terça-feira, 14 de abril de 2009

Do carvão...

O encanto do menino era viver nas nuvens, na imagem divina que fizera de si – ou se fizera de si. Lá, no recreio da escola, quando jogava à bola, não havia ninguém mais deslumbrante. Até que apareceu alguém melhor, no campo. O ego do menino tropeçou e caiu no seu desconchavo e ele fez queixinhas, lançou atoardas, imaginou artimanhas – e, vermelho de raiva, contou ao pai das suas maldições, das suas raivas, dos seus truques, dos seus insultos. O pai pediu-lhe que o acompanhasse ao jardim. Precisava de lhe mostrar uma coisa. No estendal, estava uma camisola branca apenas. E a dez, quinze metros, um saco de carvão...
- Tenta daqui acertar na camisola, até que o saco se esvazie, imagina que na camisola lá está tudo o que tu odeias, tudo a que queres mal!

Demorou quase uma hora, de arremessos em vão. Subiram ao quarto, ao longe enxergava-se ainda a camisola, tremulando ao vento...

- A camisola não se sujou. Mas, vai ao espelho e olha como tu ficaste!

Viam-se os olhos do menino a tremelicarem e todo o resto do rosto coberto de fuligem negra. Ouviu o pai dizer, sentencioso:

- O mal que se deseja aos outros, o carvão que lhes atiramos, fica sempre marcado na nossa cara, suja...

Sentiu fugirem-lhe as cinzas para dentro daquele espaço da alma que tudo gela – e estremunhou-se.

Sim, eu sei que depois do que fez, sublime, em Manchester, aconteça o que acontecer, amanhã à noite no Dragão, seja o FC Porto eliminado ou não (e eu que nunca acreditei na ilusão do massacre, acredito que não...) vai haver gente de olhos presos à TV com rostos marcados pelo carvão que andaram, invejosos, a atirar pela vida em subterfúgios, preocupando-se mais com jogos nos tribunais do que com jogos nos relvados. Só não sei se quem os vir assim verá neles a vergonha ou a má consciência - ou apenas traços sinuosos de quem magica mais um álibi ou mais um bode-expiatório para as suas fraquezas, as suas derrotas...

António Simões n' A Bola.

Sem comentários: