1 O provincianismo, ao contrário do que imaginam os lisboetas, não é uma doença que ataque apenas a gente da província: também ataca a distinta gente da capital. Dez dias a fio, a imprensa desportiva de Lisboa proporcionou ao país uma exuberante demonstração do mais ridículo provincianismo futebolístico que se possa imaginar. Eu sei que um Sporting-Benfica é um «clássico» (que eu próprio gosto sempre de ver, embora raramente com agrado); eu sei que uma final é uma final, embora a neófita Taça da Liga não passe, hierarquicamente, da terceira ou quarta competição em termos de importância na agenda desportiva — imediatamente antes do «Troféu Guadiana» e do «Troféu Eusébio»; eu sei ainda que todo o alarido feito a propósito desta final tinha que ver com o simples facto (especialmente para a «Instituição» Benfica) de nada mais de sólido terem os dois «monstros» de Lisboa a que se agarrarem, nestes idos de Março: o campeonato está a fugir-lhes, a Taça de Portugal já era, da Supertaça vão estar bem provavelmente ausentes, e a Europa terminou em enxovalho para ambos (salvas as diferenças que há, apesar de tudo, entre ser sovado nos oitavos da Champions ou ser humilhado no grupo de qualificação para os dezaseis-avos da Taça UEFA).
Mas, não obstante tudo isso, caramba, é preciso ter a noção das proporções, sob pena de perder a noção do ridículo. Meus caros amigos, acreditem: visto de fora, de quem não é nem lagarto nem lampião, a desbragada promoção deste jogo do Algarve a «jogo do ano» (como lhe chamou a SIC), foi simplesmente ridícula. Durante a semana inteira pareceu que o mundo tinha parado na expectativa de um desafio transcendente. No sábado, A BOLA dedicou-lhe nada menos do que 18 páginas (!), e só lendo o jornal de fio a pavio e muito atentamente é que alguém vindo de fora conseguiria descobrir que havia mais outro jogo no fim-de-semana... e que, por acaso, era uma meia-final da Taça de Portugal, entre o FC Porto e o Estrela da Amadora. Provincianismo também é isto: convencer-se que, fora de Lisboa ou fora de um Benfica-Sporting, tudo o resto é paisagem.
Bem, o «jogo do ano» foi um legítimo candidato a pior jogo do ano. Faltas e interrupções sucessivas, futebol aos repelões, sem dois passes certos consecutivos, escassas oportunidades de golo, zero de imaginação ou talento. O Benfica teve uma oportunidade aos dois minutos e uma bola pingadinha na trave na segunda parte, e... foi tudo o que fez: o seu futebol atingiu, na altura crucial da época, um nível simplesmente confrangedor. Razão teve o Sílvio Cervan (ele nunca se esquece...) para aproveitar mais uma vez a sua coluna das sextas-feiras aqui para tentar intimidar e pressionar previamente o árbitro (e diga-se que tem vindo a ter resultados reconfortantes nesse esforço). Em minha opinião, Lucílio Baptista é — desde há muitos anos e consistentemente — o pior árbitro português. Mas como, desde sempre, é um árbitro militantemente anti-Porto, lá foi fazendo a sua carreira, sempre para cima e sempre muito estimado pelos grandes de Lisboa e pela Comissão de Arbitragem. Raro é o jogo importante que lhe confiam em que ele não tenha influência directa no resultado — e mais uma vez assim aconteceu, só que desta vez e desdizendo a sua fama de sportinguista, ele ofereceu uma taça ao Benfica (que há quatro anos não tinha nada para pôr na vitrina). Dito isto, e apesar de só o Sporting ter merecido ganhar e ter feito por isso, não tenho a menor pena dos leões: anos a fio, Lucílio Baptista prejudicou despudoradamente o FC Porto em confrontos com o Sporting (chegou a arbitrar, sempre em prejuízo dos azuis, quatro ou cinco jogos consecutivos entre os dois emblemas para o campeonato, mais uma final no Jamor que entregou de bandeja ao Sporting), e nunca, então, eu lhes ouvi um queixume que fosse contra este árbitro. Aliás, o Sporting, tal como o Benfica, só chegou a esta final Carlsberg graças a um regulamento feito à medida para tal e graças a dois manhosos penalties que lhe permitiram virar o jogo da meia-final em Alvalade, contra a «reserva» do FC Porto — que Jesualdo Ferreira lançou às feras, porque se convenceu, muito inteligente e seriamente, que rodar jogadores era o objectivo desta «competição». (Mas, a avaliar pelos festejos dos benfiquistas no final, como se tivessem acabado de vencer a Champions, e com toda a limpeza e mérito, já não sei, não...).
E assim, no rescaldo do «jogo do ano», ouviram-se gritos de «roubo!» e «ladrão!» e «o futebol está podre!» e outros que tais: o habitual. Só que, desta vez, tudo se passou entre os parceiros da «moralização do futebol português». E eu a imaginar que, depois do Apito Dourado, o futebol português já estava moralizado!
2bPois então, jogou-se também uma meia-final da Taça de Portugal. Aliás, a primeira mão de uma meia-final— já que este ano, e como de há muito eu vinha defendendo, se joga as meias-finais a duas mãos. É um método bem mais justo, pois que evita que, como sucedeu várias vezes num passado recente, uma equipa possa chegar ao Jamor sem nunca ter jogado eliminatórias fora de casa, ou apenas o tendo feito contra clubes de dimensão claramente inferior.
Jogou-se, e o FC Porto, apesar de ter obtido um resultado confortável, não obteve um resultado suficientemente confortável para permitir a Jesualdo Ferreira fazer a gestão total da equipa na segunda mão — tanto mais que este FC Porto não tem «banco».
Foi um jogo sem grande história, embora com casos de arbitragem: o primeiro golo do FC Porto também nasceu de um penalty inexistente, mas antes havia-lhes sido mal anulado um golo e, na segunda parte, um penalty verdadeiro foi perdoado ao Estrela. Distraí-me a observar com atenção o desempenho individual dos jogadores de azul e confirmei coisas que já tinha como certas.
Que o Stepanov, o Mariano e o Farías (25 minutos em jogo sem tocar na bola!), pese a ocasionais fogachos e à simpatia da imprensa, nunca serão jogadores ao nível de um FC Porto: destoam e destoam bem.
Que ao Fernando lhe falta muito, muitíssimo, caminho a percorrer antes de chegar aos calcanhares de um Paulo Assunção e justificar a titularidade como «cabeça de área» de uma equipa com pretensões europeias.
Que o Cissokho, ao invés, foi a melhor aquisição desde o Hulk: melhora de jogo para jogo e finalmente o FC Porto parece ter um lateral-esquerdo de categoria, depois de doze experiências falhadas em cinco anos.
Que o Bruno Alves está feito um senhor jogador de categoria mundial, na linha dos grandes centrais a que o FC Porto nos habituou, desde o Geraldão e passando pelo Aloísio, Jorge Costa, Ricardo Carvalho e Pepe. Ele, Raul Meireles e Lisandro López são a grande obra de beneficiação que Jesualdo trouxe ao FC Porto. Já Ricardo Quaresma, um talento evidente que Adriaanse maltratou, e Hulk, cujo potencial Jesualdo foi o último a ver, não lhe credito. Mas estes, sim.
Viu-se também que Rodriguéz melhorou muito (desde que aqui o considerei candidato a decepção do ano), mas que continua irregular e intermitente.
Viu-se que Lisandro parece ter perdido o seu «killer instinct» (e que, quando marca, os golos são anulados e normalmente mal anulados), e que Lucho González está uma sombra do jogador que já foi. Continua, é certo, protegido da imprensa, que jura que «ele não sabe jogar mal», mas lá em cima, nas bancadas do Dragão, um público que percebe hoje de futebol como poucos, desespera ao ver a quantidade de jogo que Lucho estraga e desperdiça. É um mistério, mas que já se tinha visto também no passado.
3 Eduardo, guarda-redes do Braga e da Selecção Nacional, provou a minha tese de que um grande guarda-redes de uma equipa média ou pequena não é necessariamente um bom guarda-redes de uma equipa com ambições europeias. Especula-se que ele estará nas cogitações do FC Porto e eu espero que não: não precisamos de um guarda-redes que faça defesas impossíveis e que, de vez em quando, falhe nas possíveis: precisamos de quem defenda sempre tudo o que tem defesa. Também se especula que Jorge Jesus poderá substituir Jesualdo Ferreira como treinador do FC Porto. E eu também espero que não: não precisamos de um bom treinador — que Jesus é — e que, de vez em quando, consegue grandes resultados. Precisamos de alguém que, como Jesualdo Ferreira, consiga manter um nível de competitividade permanentemente elevado, sem nunca se queixar da sobrecarga de jogos ou excesso de competição e que saiba ter, em tudo o resto, uma atitude e uma presença ao nível de um dos oito melhores clubes da Europa.
Miguel Sousa Tavares n' A Bola.
Mas, não obstante tudo isso, caramba, é preciso ter a noção das proporções, sob pena de perder a noção do ridículo. Meus caros amigos, acreditem: visto de fora, de quem não é nem lagarto nem lampião, a desbragada promoção deste jogo do Algarve a «jogo do ano» (como lhe chamou a SIC), foi simplesmente ridícula. Durante a semana inteira pareceu que o mundo tinha parado na expectativa de um desafio transcendente. No sábado, A BOLA dedicou-lhe nada menos do que 18 páginas (!), e só lendo o jornal de fio a pavio e muito atentamente é que alguém vindo de fora conseguiria descobrir que havia mais outro jogo no fim-de-semana... e que, por acaso, era uma meia-final da Taça de Portugal, entre o FC Porto e o Estrela da Amadora. Provincianismo também é isto: convencer-se que, fora de Lisboa ou fora de um Benfica-Sporting, tudo o resto é paisagem.
Bem, o «jogo do ano» foi um legítimo candidato a pior jogo do ano. Faltas e interrupções sucessivas, futebol aos repelões, sem dois passes certos consecutivos, escassas oportunidades de golo, zero de imaginação ou talento. O Benfica teve uma oportunidade aos dois minutos e uma bola pingadinha na trave na segunda parte, e... foi tudo o que fez: o seu futebol atingiu, na altura crucial da época, um nível simplesmente confrangedor. Razão teve o Sílvio Cervan (ele nunca se esquece...) para aproveitar mais uma vez a sua coluna das sextas-feiras aqui para tentar intimidar e pressionar previamente o árbitro (e diga-se que tem vindo a ter resultados reconfortantes nesse esforço). Em minha opinião, Lucílio Baptista é — desde há muitos anos e consistentemente — o pior árbitro português. Mas como, desde sempre, é um árbitro militantemente anti-Porto, lá foi fazendo a sua carreira, sempre para cima e sempre muito estimado pelos grandes de Lisboa e pela Comissão de Arbitragem. Raro é o jogo importante que lhe confiam em que ele não tenha influência directa no resultado — e mais uma vez assim aconteceu, só que desta vez e desdizendo a sua fama de sportinguista, ele ofereceu uma taça ao Benfica (que há quatro anos não tinha nada para pôr na vitrina). Dito isto, e apesar de só o Sporting ter merecido ganhar e ter feito por isso, não tenho a menor pena dos leões: anos a fio, Lucílio Baptista prejudicou despudoradamente o FC Porto em confrontos com o Sporting (chegou a arbitrar, sempre em prejuízo dos azuis, quatro ou cinco jogos consecutivos entre os dois emblemas para o campeonato, mais uma final no Jamor que entregou de bandeja ao Sporting), e nunca, então, eu lhes ouvi um queixume que fosse contra este árbitro. Aliás, o Sporting, tal como o Benfica, só chegou a esta final Carlsberg graças a um regulamento feito à medida para tal e graças a dois manhosos penalties que lhe permitiram virar o jogo da meia-final em Alvalade, contra a «reserva» do FC Porto — que Jesualdo Ferreira lançou às feras, porque se convenceu, muito inteligente e seriamente, que rodar jogadores era o objectivo desta «competição». (Mas, a avaliar pelos festejos dos benfiquistas no final, como se tivessem acabado de vencer a Champions, e com toda a limpeza e mérito, já não sei, não...).
E assim, no rescaldo do «jogo do ano», ouviram-se gritos de «roubo!» e «ladrão!» e «o futebol está podre!» e outros que tais: o habitual. Só que, desta vez, tudo se passou entre os parceiros da «moralização do futebol português». E eu a imaginar que, depois do Apito Dourado, o futebol português já estava moralizado!
2bPois então, jogou-se também uma meia-final da Taça de Portugal. Aliás, a primeira mão de uma meia-final— já que este ano, e como de há muito eu vinha defendendo, se joga as meias-finais a duas mãos. É um método bem mais justo, pois que evita que, como sucedeu várias vezes num passado recente, uma equipa possa chegar ao Jamor sem nunca ter jogado eliminatórias fora de casa, ou apenas o tendo feito contra clubes de dimensão claramente inferior.
Jogou-se, e o FC Porto, apesar de ter obtido um resultado confortável, não obteve um resultado suficientemente confortável para permitir a Jesualdo Ferreira fazer a gestão total da equipa na segunda mão — tanto mais que este FC Porto não tem «banco».
Foi um jogo sem grande história, embora com casos de arbitragem: o primeiro golo do FC Porto também nasceu de um penalty inexistente, mas antes havia-lhes sido mal anulado um golo e, na segunda parte, um penalty verdadeiro foi perdoado ao Estrela. Distraí-me a observar com atenção o desempenho individual dos jogadores de azul e confirmei coisas que já tinha como certas.
Que o Stepanov, o Mariano e o Farías (25 minutos em jogo sem tocar na bola!), pese a ocasionais fogachos e à simpatia da imprensa, nunca serão jogadores ao nível de um FC Porto: destoam e destoam bem.
Que ao Fernando lhe falta muito, muitíssimo, caminho a percorrer antes de chegar aos calcanhares de um Paulo Assunção e justificar a titularidade como «cabeça de área» de uma equipa com pretensões europeias.
Que o Cissokho, ao invés, foi a melhor aquisição desde o Hulk: melhora de jogo para jogo e finalmente o FC Porto parece ter um lateral-esquerdo de categoria, depois de doze experiências falhadas em cinco anos.
Que o Bruno Alves está feito um senhor jogador de categoria mundial, na linha dos grandes centrais a que o FC Porto nos habituou, desde o Geraldão e passando pelo Aloísio, Jorge Costa, Ricardo Carvalho e Pepe. Ele, Raul Meireles e Lisandro López são a grande obra de beneficiação que Jesualdo trouxe ao FC Porto. Já Ricardo Quaresma, um talento evidente que Adriaanse maltratou, e Hulk, cujo potencial Jesualdo foi o último a ver, não lhe credito. Mas estes, sim.
Viu-se também que Rodriguéz melhorou muito (desde que aqui o considerei candidato a decepção do ano), mas que continua irregular e intermitente.
Viu-se que Lisandro parece ter perdido o seu «killer instinct» (e que, quando marca, os golos são anulados e normalmente mal anulados), e que Lucho González está uma sombra do jogador que já foi. Continua, é certo, protegido da imprensa, que jura que «ele não sabe jogar mal», mas lá em cima, nas bancadas do Dragão, um público que percebe hoje de futebol como poucos, desespera ao ver a quantidade de jogo que Lucho estraga e desperdiça. É um mistério, mas que já se tinha visto também no passado.
3 Eduardo, guarda-redes do Braga e da Selecção Nacional, provou a minha tese de que um grande guarda-redes de uma equipa média ou pequena não é necessariamente um bom guarda-redes de uma equipa com ambições europeias. Especula-se que ele estará nas cogitações do FC Porto e eu espero que não: não precisamos de um guarda-redes que faça defesas impossíveis e que, de vez em quando, falhe nas possíveis: precisamos de quem defenda sempre tudo o que tem defesa. Também se especula que Jorge Jesus poderá substituir Jesualdo Ferreira como treinador do FC Porto. E eu também espero que não: não precisamos de um bom treinador — que Jesus é — e que, de vez em quando, consegue grandes resultados. Precisamos de alguém que, como Jesualdo Ferreira, consiga manter um nível de competitividade permanentemente elevado, sem nunca se queixar da sobrecarga de jogos ou excesso de competição e que saiba ter, em tudo o resto, uma atitude e uma presença ao nível de um dos oito melhores clubes da Europa.
Miguel Sousa Tavares n' A Bola.
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