quinta-feira, 26 de março de 2009

Balbúrdia e circo

O sopapo foi violento. Disse a um amigo moçambicano que aceitava o convite para o jantar, conquanto este não me impedisse de estar no hotel a horas de poder ver na TV o jogo da final da taça da nossa Liga cervejeira. E ele acertou-me em cheio, sem dó nem piedade: «Tu ainda perdes tempo a ver jogos entre solteiros e casados?!»
O que dói mais é o facto de eu também pensar isto e de, mesmo assim, me ter exposto ao enxovalho e de este ser merecido e bem assestado. Sabemos e vemos as coisas, mas fazemos de conta que desconhecemos. Por isso não temos qualquer desculpa; pelo contrário, com o silêncio tornamo-nos cúmplices da situação.

É preciso afastarmo-nos da realidade para nos chocarmos com facetas notórias e aberrantes que ela contém. Não sei se existirá outro País que se masturbe tanto por causa do futebol e sustente um tão gigantesco e permanente circo em torno dele. Abrimos as páginas dos jornais — quer dos desportivos quer dos generalistas — e não se oferece assunto mais candente que o da balbúrdia encenada a propósito da indústria (já não é desporto?) que nele fervilha. O facciosismo doentio é chocante em textos de jornalistas que, pelo facto de o serem, deviam esforçar-se por respeitar o código deontológico, guardar distância do clube do coração, não eleger inimigos de estimação e destilar sobre eles o ódio da aversão. Passa-se para os canais da rádio e televisão e o panorama repete-se; competem arduamente entre si, a ver qual deles coloca no ar o programa mais sensacionalista e estapafúrdio em termos de berraria, estultice, alienação e ausência de razoabilidade a respeito da coisa futebolística. Tresanda a manicómio. É dose para burro; e, por mais absurdo que seja, é injectada todos os dias e nós aguentamos!

Os jornais e os programas radiofónicos e televisivos, dizem renomados especialistas, seguem o rumo certo, porquanto atingem altos índices de leitura e audiência. Logo ajustam-se à procura dos consumidores, o que funciona como critério de sucesso, de adaptação e obediência às bitolas e mandamentos do mercado. Contribuir para modificar o gosto e os hábitos e elevar o nível das exigências e necessidades de consumo dos amantes do futebol — isso não faz parte das suas atribuições. Não têm vocação para missionários, nem muito menos para mártires! Têm, sim, que se limitar a acompanhar o espírito do tempo, tal como acontece nas outras áreas. A mais não são obrigados!

Obviamente o ambiente de mediocridade tende a propagar-se e a levar vantagem. Até porque, disse Somerset Maugham, «apenas os medíocres estão sempre no seu máximo». Os outros seres não conseguem isso, têm limitações e cansam-se, deixando portanto o caminho aberto à progressão da intrépida estupidez. Não espanta que o nosso futebol seja um campo onde ela alastra e frutifica a muitos níveis. Como quem tira coelhos da cartola, fazem-se num ápice treinadores a partir de nada; e deitam-se abaixo num piscar de olhos. Com base em toques habilidosos na bola e nos penteados e demais adereços ao sabor da moda, criam-se e idolatram-se génios que, afinal, se afogam na praia.

De vez em quando há um sobressalto amargo, face à ridicularização que cobre alguns dos nossos clubes nas competições europeias. Mas é sol de pouca dura; a choradeira e o luto nem sequer aguentam até à missa de sétimo dia. Tudo volta rapidamente a colorir-se de vermelho e verde numa parada triunfal. A euforia e a megalomania retomam o seu curso imparável: a final da insignificante Taça da Liga é pintada dias a fio, nada mais, nada menos, como a maior festa do mundo; e redunda num espectáculo degradante, seguido de cenas de podridão.

Os ataques baixos e descabelados ao FCP redobram de tom. Há que abatê-lo, dê lá por onde der; e a culpa é manifestamente dele, por se recusar ao nivelamento rasteiro, a baixar a cerviz e a não alinhar no fado dos coitadinhos. Enfim a frustração pelo demérito e fracasso próprios e a inveja pelo mérito e êxito alheios gozam de boa saúde no nosso meio.

Jorge Olímpio Bento n' A Bola.

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