terça-feira, 25 de agosto de 2009

Abriu a caça

1 Abriu a caça mas ainda não foi aquela de que sou adepto: perdizes, coelhos, lebres, etc — essa só lá para início de Outubro. Abriu, de facto, a caça a duas espécies migratórias — rolas e pombos, mas eu falhei a abertura por ausência no estrangeiro e contaram-me que não foi famosa. Não, a caça que agora abriu foi outra, a uma espécie muita rara — uma espécie de jogador de futebol que já não se usa, que avança sem medo direito aos adversários e à baliza contrária, que assume todos os riscos do futebol de ataque (o único que interessa ver), enfim, um tipo de jogador que minimiza todos os outros e deixa os adversários com os nervos em franja. Um jogador assim só pode ser travado sendo acoitado e caçado. Por isso mesmo, começou o campeonato e logo abriu a caça ao Hulk.
Jesualdo Ferreira disse e bem que é muito fácil expulsar o Hulk em Portugal. É facílimo: basta que o árbitro consinta que ele leve pancada desde o minuto primeiro do jogo, que vá levando e levando e que, perante a complacência do árbitro, acabe por explodir de nervos, porque, caramba, ele está ali para jogar futebol e não para ser um saco de pancada de quem só assim consegue pará-lo. Aqui há tempos, quando o Mantorras era uma estrela emergente e igualmente uma força da natureza, começou também a levar pancada sistematicamente, como «estratégia» e «táctica» engendrada por treinadores medíocres, inimigos do futebol. Mas aí rapidamente se organizou um coro, acentuado pela imprensa, sob o grito de «deixem jogar o Mantorras!».

O Hulk não beneficia do mesmo estatuto nem do mesmo apoio da imprensa. Tal como não beneficiou, aqui há três anos, o Ricardo Quaresma. Tal como Quaresma, também Hulk é um desequilibrador de jogos, um perigo à solta e logo uma vítima do anti-jogo. E, tal como o Quaresma, o que parece relevar não é a pancada que leva perante a complacência dos árbitros, mas as reacções que humanamente tem, quando já não aguenta mais. No ano passado, ele foi aguentando até ao limite, até que, como se adivinhava, foi vítima de uma entrada assassina num jogo da Taça, na Amadora, e ficou um mês no estaleiro — sem que nada tenha acontecido ao agressor (nem sequer foi expulso do jogo). Este ano, talvez antevendo uma época inteira de massacre idêntica à anterior, o Hulk perdeu a paciência no primeiro jogo e logo foi expulso. Melhor ainda: já que se tratava dele, em vez de um jogo de suspensão habitual, levou dois. Quando regressar, das duas uma: ou come e cala, ou volta a ser expulso e então leva três jogos. Assim se equilibram as coisas. E assim se arbitra em Portugal — porque estes mesmos árbitros, a arbitrar no estrangeiro, não se atrevem a actuar assim, porque a UEFA quer e precisa dos grandes jogadores em acção e não na enfermaria. Mas é seguramente uma coincidência que tanto o Hulk como o Quaresma tenham servido e sirvam o FC Porto, enquanto que Mantorras é do Benfica.

2 O campeonato ainda vai na primeira infância, mas já deu para perceber duas coisas: que o tema das arbitragens vai continuar a ser o preferido de jornalistas, adeptos e treinadores; e que as mãos vão ser um factor determinante no desfecho dos jogos, todavia jogados com os pés. O Sporting ficou a reclamar um penalty por mão, não assinalado no jogo contra o Braga; o Benfica beneficiou de um na primeira jornada, contra o Marítimo e ficou a reclamar mais um também por mão, no mesmo jogo; e teve mais outro a seu favor no jogo contra o Guimarães, ainda acumulado com a expulsão do adversário; e, por mão também, o FC Porto abriu o marcador contra o Nacional e viu dois adversários expulsos na sequência do penalty assinalado. A discussão não vai ter fim e os que hoje se consideram prejudicados amanhã serão beneficiados, ficando a reclamar no primeiro caso e ficando muito bem calados no segundo. Infelizmente, a ideia que tenho e que já vem de trás é que os árbitros e os jornalistas não têm um critério uniforme e claro para distinguir o que é mão na bola e o que é bola na mão. O exemplo mais evidente é o do penalty reclamado pelo Benfica aos 93 minutos do jogo contra o Marítimo: há um jogador madeirense caído no chão e apoiado nos dois braços, com as mãos espalmadas no relvado; a bola é chutada a curta distância e vai-lhe bater num dos braços, que ele não move nem pode mover, naquela posição. O árbitro, e bem, deixou passar, mas a imprensa berrou «penalty!», com uma convicção que desafia as leis da dinâmica e da anatomia humana. E, infelizmente, esta indeterminação de critério ameaça tornar-se o factor mais decisivo do campeonato. Um campeonato decidido pelas mãos.

3 O Sporting deu o primeiro valente tropeção contra um Braga dirigido por Domingos Paciência — que, por uma vez, deve ter calado as más-línguas benfiquistas. Os adeptos estão insatisfeitos e descrentes com um começo de época mais do que cinzento. Como seria de esperar, Paulo Bento é o primeiro alvo da contestação, mesmo que entre pelos olhos adentro de qualquer um que não há milagres. Dizem que esta é a mesmíssima equipa do ano passado, como se isso fosse uma vantagem, quando afinal é esse o problema: a equipa é um ano mais velha e, se já no ano passado não era boa, este ano é pior. Verdadeiramente, o Sporting só tem um bom jogador, que é o Liedson. Todos os outros são medíocres ou apenas razoáveis. Não é por acaso que, por exemplo, os tão badalados João Moutinho e Miguel Veloso, de quem se diz que anda a Europa inteira a observar e a tentar comprar há dois anos, nada mais tiveram do que umas vagas e dispiciendas ofertas de pequenos clubes europeus. É casa onde não há pão…

O Benfica mantém a sua extraordinária tendência para salvar os jogos nos últimos minutos: foi assim com o Marítimo e voltou a ser assim com o Guimarães. Com menos uns oito minutos jogados no total dos dois jogos, o Benfica estaria agora com um ponto e zero golos marcados. Mas, como disse Jesus, é assim que se fazem os campeões.

Só não percebi a revolta do treinador e jornalistas benfiquistas contra o esquema de jogo apresentado pelo Marítimo na Luz. Que estiveram o tempo todo a defender? Mas como é que eles julgam que se fazem os campeões nos jogos contra estas equipas? Ou esperariam que lhes bastava anunciar «este ano vamos ser campeões» e todas as equipas passavam a ter obrigação de jogar contra o Benfica sem lutar pelos pontos e apenas com a missão de abrilhantar o espectáculo e as pré-anunciadas vitórias da águia?

O povo e a imprensa benfiquista (que se confunde frequentemente com ele) continuam a confundir desejos com realidades — o que quase sempre conduz a um despertar ressacado. Bastou terem ganho 4-0 numa eliminatória de acesso à Liga Europa (!), contra uma equipa de que nunca ninguém tinha ouvido falar, para logo desatarem a prever o regresso do «grande Benfica europeu» — uma coisa sucedida há quase duas gerações atrás! Afinal, de certo, mesmo certo, tiveram mais uma vitória em Guimarães — uma tradição que se transformou em fatalidade desde que o Vitória resolveu estabelecer aquele pacto de amizade com o Benfica, com o objectivo (falhado) de levar os dois à Europa pela porta dos fundos e com a prestimosa colaboração do CD da Liga. Isso sim, é uma certeza inabalável. O resto ainda tem de ser demonstrado.

Quanto ao FC Porto, que anteontem actuou com quatro reforços, ainda é cedo para perceber se esta equipa vai conseguir ser equivalente ou melhor que a do ano passado. Infelizmente, Jesualdo — talvez o mais teimoso de todos os treinadores da primeira Liga — mantém, inabalável, as suas apostas em Helton e no desesperantemente inútil e trapalhão do Mariano González. Não sei para que serviu comprar o Beto e não sei como é que se mantém o Mariano e se deita fora o Rabiola e o Candeias: será que o problema é serem todos portugueses? Do que vi, gostei do Belluschi, do Falcao e do Varela; o Álvaro Pereira vai ter de mostrar muito mais para fazer esquecer o Cissokho. A ver vamos o que dali sai.

Miguel Sousa Tavares n' A Bola.

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