terça-feira, 13 de abril de 2010

Um deus na relva

1 Lionel Messi é o futebol resgatado do seu lado submerso e mesquinho. Quando o vejo jogar, compreendo como tudo o resto é estúpido e quase me envergonho de perder ainda tempo a discutir túneis e árbitros com quem vê no futebol quase só uma guerra tribal e uma escola de ódios organizados. Messi tem cara de miúdo, envergonhado pelo seu génio e quase pedindo desculpa por ter de enver- gonhar os seus colegas de profissão, lá em baixo no relvado, onde ele faz com uma bola nos pés e à vista do mundo o que nós fazemos em sonhos ou imaginamos que será possível fazer. Lá, no alto da bancada, estão os figurões da bola, os que compram clubes como poderiam comprar cavalos de corrida ou iates de trinta metros, os que dirigem os clubes como coisa sua, explorando em benefício próprio a paixão dos adeptos ou o talento de jovens como Lionel Messi. De vez em quando, as câmaras de televisão desviam-se do relvado e de Messi e focam-se lá em cima, no que chamam a «bancada presidencial», onde os figurões se fazem tratar por «presidente» e olham de cima, como se fossem Césares contemplando os seus gladiadores.
Gosto do jeito de miúdo envergonhado deste deus dos estádios. Ele não tem tatuagens, nem brincos, nem exibe os peitorais para as câmaras, não discute com os árbitros em atitude de vedeta, não finge faltas que não sofre, mesmo quando as sofre, e não protesta, mesmo quando um caceteiro brutal como o Xabi Alonso tenta arrumá-lo do jogo à porrada. Nas férias, ele não é «flagrado» com «miúdas de programa», contratadas pelo seu agente de imprensa para prolongar a sua aura fora do estádio. Ninguém sabe como vive e o que faz quando não está a fazer o que interessa e o que nos deslumbra, que é a jogar futebol. E em nenhum momento, Messi se acha superior ao Barcelona, que o revelou ao mundo, ou se esquece da responsabilidade social, cultural, histórica, de representar a cidade de Barcelona e a Catalunha: esse foi o erro de apreciação de Luís Figo. Jamais veremos Messi a ser alvejado com moedas ou cabeças de porco. Ele não joga por dinheiro, joga porque recebeu um mandato divino para o fazer.

Na terça-feira, Lionel Messi destroçou o Arsenal, num jogo de futebol que quem viu nunca esquecerá; no sábado, abriu caminho à lição de futebol que o Barcelona de Guardiola — provavelmente a melhor equipa que jamais existiu — foi dar a Chamartín, reduzindo a pó a soberba de um exército de vedetas comprado a peso de milhões, mas onde faltam exuberantemente a humildade, o profissionalismo e a generosidade. O olhar triste de Iker Casillas, o capitão do Real Madrid, no final do jogo, dizia tudo: ele percebeu que os milhões gastos a comprar os colegas que jogam à sua frente não tinham feito do Real uma equipa, no verdadeiro sentido da palavra. É por isso que eu gosto tanto de ver os grandes, como o Real, ou o Manchester, ou o Milan, a perder. Para tentar acreditar que o dinheiro não faz toda a diferença.

2 Com duas sessões de Barcelona e Lionel Messi em poucos dias, fica difícil descer à terra e falar do futebol de um planeta satélite. Lá vi o Benfica a perder em Liverpool, reclamando do cansaço (o que até poderia ser desculpa razoável contra outra qualquer equipa, não contra uma das equipes de topo inglesas, que jogam 60 jogos por época). O Liverpool destroçou o Benfica como qualquer grande equipa inglesa destroça normalmente as portuguesas. Com futebol directo, velocidade, desmarcações, cruzamentos, remate fácil e muito treino. Riram-se muito quando o FC Porto levou cinco do terceiro classificado do campeonato inglês, mas mesmo o tão louvado Benfica deste ano mostrou estar a milhas do sexto classificado de Inglaterra. A verdade é essa: o dinheiro não faz toda a diferença, mas sempre faz muita.

3 Hoje à noite, o Benfica, se olharmos para a tradição, não é favorito contra o Sporting, mesmo na Luz. Pode muito bem perder pontos, dois ou três, e reabrir a luta com o Braga. Mas, acredito, apenas isso: reabrir a luta, nada mais.

E o Braga lá ganhou mais um jogo, como habitualmente: uma dose de sorte, outra de capacidade defensiva a disfarçar um futebol de ataque muito mau, muito esforçado, muito sem talento. Dois golos marcados de seguida — um oferecido pelo guarda-redes, outro oferecido por um defesa — e mesmo assim concluído com um remate falhado que encontrou a baliza. Será que consegue ir assim até ao fim?

Ao FC Porto fez mal jogar depois de saber o resultado do jogo do Braga, porque isso tirou a motivação aos jogadores. Pior ainda foi a absurda decisão da RTP de o pôr a jogar num horário quase coincidente com o do Real Madrid-Barcelona. Enfim, lá ganharam, cumprindo os mínimos. Resta ganhar a Taça e encerrar uma época de má memoria, que se começou a perder no saldo de comprar e vendas do final da época anterior. Disse Pinto da Costa que, para o ano, não se repetirão erros e ingenuidades como os túneis e outros mais, não nomeados. Eu espero bem que sim e que, entre os erros não nomeados mas directamente responsáveis pelo fiasco desportivo e financeiro, não se repita o erro de deixar o dr. Adelino Caldeira meter o nariz nas contratações e negócios de compra e venda de jogadores. Que se recuperem alguns talentos que se andam a perder entre as dezenas de jogadores emprestados que sobrecarregam, sem contrapartida alguma, a folha salarial do clube, trocados habitualmente por negócios sul-americanos sem sentido — para dizer o mínimo. Pelas minhas contas, a «limpeza de activos» que visivelmente se recomenda para a época seguinte, inclui nada menos do que uns catorze jogadores a despachar.

4 Disse Pinto da Costa também que se vai recandidatar ao 14.º, 15.º ou 16.º mandato — já lhes perdi a conta. E disse que só o faz, porque este foi um ano falhado — porque, se tem chegado ao «penta» prometido a Pedroto, ia-se embora. Ora, escusava de ter explicado: se a sua vontade era mesmo essa, deveria tê-lo dito antes — no início da época, por exemplo. Assim, acredita quem quiser. Eu, pessoalmente, acredito, sim, que, para o bem e para o mal, ele jamais de lá sairá pelo seu pé. Como então o escrevi, ele teve, como poucos têm, uma oportunidade rara de ter saído em ombros e ter deixado o seu nome para sempre, como o de um vencedor. Foi em 2004, depois de ter ganho a Champions e de ter sido campeão nacional. Teria saído então, deixando o clube campeão europeu, com um estádio novo e maravilhoso e um excedente financeiro, resultante da venda de parte da equipa campeã europeia, que teria dado para pôr o défice a zero. Mas não quis, o que também foi legítimo. Só que agora corre atrás da História, convencido, ou talvez não, que se consegue entrar num comboio em andamento depois de se ter falhado o embarque com ele parado. Deve-lhe custar ver o exemplo de Laporta, no Barcelona: ganhou, tudo, absolutamente tudo o que havia para ganhar, e agora vai-se embora, pela porta grande. As grandes instituições são sempre maiores que qualquer homem.

5 No auge do campeonato, Leixões e Belenenses conseguiram ambos roubar preciosos pontos ao FC Porto, arrancando dois empates (o Belenenses no Dragão) pelo método do autocarro e do anti-jogo. Vendo-os jogar então, e confirmando que ali estavam, sem dúvida, as duas piores equipas do campeonato, fiquei a pensar de que lhes teria servido aqueles exercícios de anti-futebol, saudados como triunfantes vitórias. «Se ao menos — pensei para comigo — jogassem assim também e fizessem o mesmo ao Braga e ao Benfica…!». Mas não, não fizeram. Continuaram a jogar mal e nada mais. Agora, vão os dois para a segunda divisão. Confesso que não tenho pena alguma: não por terem roubado pontos ao FC Porto, mas por o terem feito da forma que o fizeram e apenas com o FC Porto.


Miguel Sousa Tavares n' A Bola.

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