NAS minhas memórias mais longínquas há uma foto a preto e branco de Leónidas da Silva, acrobático, num instante em que ele parece vencer, mais deus do que homem, a lei da gravidade. A bola já não está lá, mas imagina-se: vai, caprichosa, a caminho das redes, em profético destino. Anos a fio me contaram que fora assim: o corpo no ar, as costas para baixo, em frenesim de tesoura, que ele se imortalizara. No Mundial de 38, jornalista francês, jurou, arrebatado, que lhe contara seis pernas a desdobrarem-se umas nas outras, que coisa como essa só poderia ser a magia negra que ele era. Tudo isso talvez fosse verdade. Só numa coisa me enganavam: que o golpe da bicicleta fora ele que inventara. Não foi, descobri depois – foi Ramon Unzaga, no porto chileno de Talcahuano, algures pelos anos 10. Lançou a jogada e David Arellano celebrizou-a. Pequenino, encantava-se ao vê-lo ensaiar a pirueta na areia suja da praia. Tanto o imitou que puxou a criação para lá da criatura. Arellano jogava no Colo-Colo e em 1917 veio, estrela já, em digressão à Europa. Em Espanha, vários golos marcou de bicicleta – que, súbita, se rasgou em tragédia: em Valladolid, sonhou, outra vez, as bancadas a saltarem em reboliço do seu chão, entrou, sublime, em voo, um defesa atingiu-o, brutal, com um pontapé no peito. Morreu, horas depois, no hospital, de uma peritonite. O Colo-Colo pôs-lhe o nome no Monumental de Santiago – e do emblema do clube nunca mais saiu o fumo negro que foi luto por ele.
Tem piada: sábado, ao minuto 5 do FC Porto-Marítimo, não foi o espírito de Arellano que eu percebi a insinuar-se-me na cabeça – foi o de Leónidas. Quando pensei que se os jogadores de futebol fossem, românticos, como antigamente – Peçanha tinha-se levantado, vencido, do chão e batido palmas a Falcao. Pois reza a história que era o que faziam os guarda-redes quase sempre que Leónidas largava pelos campos golos como aquele: poemas delicados a nascerem-lhe dos pés em flor, lá no ar. Falcao merecia.
António Simões n' A Bola.
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