terça-feira, 27 de abril de 2010

Falcao, águias e outras rapinas

1 Pedro Henriques é um árbitro que, quando apareceu, prometia bem mais do que aquilo que viria a cumprir. Por razões que ignoro, o facto é que ele nunca passou de um árbitro banal, às vezes mesmo, pior do que isso até: acumula algumas limitações de julgamento, técnicas, com uma postura de vedetismo e autoritarismo que, não sendo qualidades em si mesmas, só podem tornar mais evidentes os defeitos. Nada é menos eficaz do que o autoritarismo sem a autoridade natural da competência. E, desta vez, quem pagou as favas foi Falcao — ou, como bem disse Jesualdo Ferreira, o espectáculo do Porto-Benfica que aí vem. Por desejo de protagonismo, por autoritarismo, Pedro Henriques resolveu tirar Falcao do clássico deste fim-de-semana, conseguindo ver numa mão em queda de um jogador em queda, depois de derrubado pelos adversários, uma atitude adequada para um cartão amarelo. Incompetência: essa mão na cara do adversário ou ele a julgava como acidental ou a julgava intencional — e então, seria uma agressão, que daria motivo para um vermelho directo, jamais para um amarelo. Exibicionismo: num jogo já decidido e sem história, Pedro Henriques não resistiu a entrar para a história como o árbitro que impediu que a luta pela Bola de Prata entre Falcao e Cardozo pudesse continuar a ser o único, rigorosamente o único, motivo de interesse que ainda resta neste campeonato. Nesse instante, de peito feito, ele achou-se importantíssimo, a suprema autoridade. Enganou-se e o seu engano é ridículo: Falcao faz falta ao espectáculo e, na disputa particular em que estava envolvido, é insubstituível; ele, não.

2 De qualquer maneira, não é justo mandar todas as culpas do desfecho da Bola de Prata para cima de Pedro Henriques. Jorge Jesus fez notar que a Bola de Prata é um troféu que já escapa ao Benfica há muitos anos — e que o Benfica adorava juntar este ano ao título de campeão, já entregue. E, como se tem visto e se viu outra vez este fim-de-semana, estamos em ano em que o Benfica quer, o Benfica tem. Os jogos do Glorioso têm tido uma fatal tendência para serem marcados por uma série infindável de penalties a favor (que Cardozo lá vai transformando, mais mal que bem) e por expulsões dos adversários, que muito facilitam os desfechos. Cardozo leva uns dez penalties convertidos no rol dos seus golos acumulados, Falcao leva dois. Cardozo leva alguns golos validados em off-side (como o terceiro do seu hat-trick contra o Olhanense), Falcao leva quatro golos limpinhos anulados por falsos off-sides. Está uma passadeira vermelha estendida para que Óscar Cardoso leve a Bola de Prata, a de Ouro e a de Diamantes. Resta, como me confessava um benfiquista mais tranquilo que outros que por aí andam, que Falcao é muito melhor avançado e jogador do que Cardozo — como aliás percebe qualquer um que perceba de futebol. E eu, que até acho que Cardozo é um bom avançado e útil na sua missão, não pude deixar de concordar com este benfiquista, quando ele, recebendo a notícia do terceiro golo de Cardozo contra o Olhanense, comentou: «Se ele, além de marcar golos, soubesse jogar futebol, já estava no Real Madrid!».

Não impede que Radomel Falcao, tão a leste destas guerrilhas internas, foi roubado de um troféu individual que indiscutivelmente merecia e mereceu, pela época que fez, pelos golos que marcou e pelos que injustamente lhe anularam e pelo jogador que é. Falcao saiu do jogo de Setúbal em lágrimas por não poder jogar o seu primeiro Porto-Benfica; Jesualdo Ferreira foi expulso do banco pela primeira vez na sua carreira. E Pedro Henriques lá vai continuar igual.

E não impede que Vítor Pereira deveria ter mais pudor em não nomear para os jogos finais do campeonato os árbitros que o mundo inteiro sabe que levam uma mancha benfiquista no coração. Lucilio Baptista — um dos piores árbitros dos últimos anos do futebol português — já não tem margem para benefício da dúvida, quando arbitra o Benfica. Toda a gente o sabe, toda a gente o vê, já toda a gente sorri quando o vê actuar com o Benfica em campo. Desta vez e em apenas oito minutos, ele liquidou o Olhanense e nem sequer deixou qualquer hipótese de que o jogo se pudesse vir a complicar para o Benfica. Aos dois minutos, marcou pressurosamente um daqueles penalties de bola no braço que, em querendo, só não se assinalam aos manetas (e bem menos evidente do que o braço na bola com que Aimar amorteceu para marcar o quinto golo do Benfica). E, aos oito, aí já com razão, mostrou o segundo amarelo ao não-maneta do Olhanense e, com isso e o penalty inventado, o jogo ficou arrumado, tirando os fait-divers: o quarto golo em off-side, o quinto preparado com a mão. Viva o campeão e o Bola de Prata!

Consola-me pensar que em breve Lucílio Baptista gozará a sua justa reforma e Ricardo Costa a sua justa retirada de cena. Cumpridas as suas missões, elogiado o seu zelo em defesa da «transparência». E talvez, quem sabe para o ano, o campeonato se resolva exclusivamente dentro do campo e não haja protagonistas marginais ao jogo a cumprirem a sua penosa missão de retirarem de jogo os seus verdadeiros e melhores protagonistas. Um campeonato inteiramente jogado à luz do dia, longe das sombras dos túneis, dos tiques de autoridade de personagens menores e que nenhuma, nenhuma falta fazem ao futebol.

3 Ricardo Costa retira-se, aliás, com mais uma derrota na sua infatigável batalha contra o F.C. Porto: o Conselho de Disciplina não apenas revogou o seu «castigo» de mais três meses de silêncio a Pinto da Costa, como ainda lhe lembrou esta coisa evidente: quem é o Sr. Ricardo Costa para querer silenciar quem quer que seja? Quem é este Torquemada de trazer por casa que se acha mais importante do que a própria Constituição da República? Quem é este mestre de direito cujas brilhantes teses, e de sentido único, nunca são acompanhadas por ninguém mais que julga os mesmos factos que ele? Quem é este pavão justiceiro que até consegue retirar à águia o brilho que, todavia, nós até lhe reconhecemos? Bye, Bye, Dr. Costa, volte lá para de onde nunca deveria ter saído.

4 Fantástico José Mourinho: ele e só ele derrotou o Barcelona. Não foi o Inter, porque o Inter é uma equipe banal, apenas com um grande guarda-redes e um excelente médio-esquerdo chamado Snejder. O resto são vedetas sem sustentação futebolística — como esse menino mal-educado que é o Balotelli, um jogador absolutamente vulgar, que eu, francamente, não consigo entender como é que merece de Mourinho mais atenção e mais oportunidades que o Ricardo Quaresma.

É sintomático que toda a critica tenha escrito que Mourinho anulou o Barça— jamais que o Inter fez um grande jogo. Não fez, nem nunca faz (talvez contra o Milan, no campeonato, e contra o Chelsea, em Londres). De resto, o futebol do Inter é tão entusiasmante como o Ricardo Costa a explicar as suas teses jurídicas: é um futebol incapaz de dar vida a um moribundo a quem prometessem mais dez anos de vida. Mas isso só torna mais notável o desempenho de José Mourinho: a sua capacidade única de estudar os adversários até à alma e de inventar maneira de os reduzir à impotência e o seu talento para juntar nove homens banais, acrescentados de dois ou três bons, e deles todos fazer uma equipe ganhadora. Mas, continuo na minha: de todas as equipes vencedoras de José Mourinho, a que melhor futebol jogava, que mais espectáculo dava, foi o F. C. Porto de 2003, que venceu em Sevilha a Taça UEFA.

PS: Ricardo Araújo Pereira lá prossegue a sua insana tarefa de meu arquivista particular e não nomeado. Desta vez, e para além do desejo reiterado de não me ver falar de árbitros (exclusivo de cronistas benfiquistas, como ele), realça a minha grande contradição por, em Julho passado, ainda a época não tinha arrancado e eu não tinha visto jogar ninguém, ter previsto que o F.C.Porto era outra vez o principal candidato ao título. O facto de, logo em Setembro e depois de ver o que já havia para ver, ter começado a escrever que o Benfica era a melhor equipe, à vista, não anula essa penosa contradição que ele me atribuí. Ao contrário dele próprio, a quem ninguém verá jamais um elogio ao futebol jogado pelo F.C.Porto (aliás, futebol, propriamente dito, é assunto que nunca o ocupa), ele acha que eu cometi o crime de não ter começado a elogiar o Benfica logo após o Torneio do Guadiana. OK: solenemente declaro, desde já, que o meu favorito para o ano é o Benfica. É o Benfica, é o Benfica.

Entretanto, agradeço ao arquivista ter-me lembrado que em Olhão, no jogo da primeira volta, o Cardozo só não foi para a rua porque o árbitro, enquanto caminhava para ele para lhe mostrar o vermelho merecido, lembrou-se do Benfica-Porto na semana seguinte e mudou o vermelho para amarelo. O Pedro Henriques também se lembrou do Porto-Benfica, mas, estranhamente, a consequência foi a oposta...

Miguel Sousa Tavares n'A Bola.

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