Meu caro Hulk:
OI! Você me conhece, sou Carlos Drummond de Andrade, o poeta. Não estranhe: mesmo morto continuo vendo futebol. Deixe que conte um troço para você: uma noite, entre o fio de cachaça e a nuvem de fumo, amigo meu me revelou, torcido:
– Tenho remorso antigo. Quando era garoto, adorava futebol de botão. Um dia, acabei com os botões do quarto de costura de mamãe, e não havia outros em casa. Fui ao guarda-roupa de vovô e saqueei-o. Coitado, o velhinho vivia na cadeira de rodas, e praticamente só usava pijama. No dia em que ele morreu, a família ficou atrapalhada para vestir-lhe um terno escuro: estava tudo sem botão...
É, eu sei que houve gente aí que andou fazendo de você botão, agarrado não para jogar – mas para esconder, estragar, queimar talvez. (E acho que não tem remorso, não...) Por isso, quando, domingo, o vi, vibrando louco com aquele gol, sabe que pensei?:
– O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. É fazer um gol como Pelé. Aquele gol que gostaríamos tanto de fazer, que nos sentimos maduros para fazer, mas que, diabolicamente, não se deixa fazer...
Esse seu gol foi gol como só Pelé fazia, acredite – contra o destino e a revolta, um desses lances que levam vocês, os jogadores de bola, para lá da humanidade. Pois é, ainda estava com aquela sua festa em Belém nos olhos - e um cara aqui, lembrou que fui eu que descobri que no futebol a imparcialidade do juíz é uma virtude que desejaríamos se voltasse para o nosso lado. Percebi a insinuação dele, rebati: não tem nada a ver. E não. E lembrei de lhe escrever – para dizer que seu gol não foi o ponto mágico onde há-de começar tudo a nascer do perdido, lentamente - foi a prova de que crime mesmo é deixar alguém como você fora da grama sem dar para nós sua poesia. Quem ganhou com seu drama? Não sei - nem importa. Quem perdeu, isso sei - foi o futebol. (Ah! Pecou? Tinha de pagar! Mas justo era pagar em dinheiro, jogando, né?! Fala isso aí...)
António Simões n' A Bola.
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