terça-feira, 23 de junho de 2009

«Assalto» ao Glorioso

1 Os ditadores modernos nunca se assumem como tal, até porque têm sempre a seu favor poder reclamar a legitimidade democrática de uma eleição. A sua sabedoria consiste exactamente em saber perpetuar-se no poder, preparando as eleições de forma que não possa nunca haver outro vencedor. O nosso poder autárquico está cheio de casos destes, a que chamam os «dinossauros» do poder local; o poder regional tem o exemplo supremo, à escala mundial, do grande líder Jardim, vencedor de 27 eleições e há 30 anos no poder; o mundo futebolístico abunda em exemplos semelhantes, de que o mais conhecido e antigo é o de Pinto da Costa no FC Porto, e o último em data o de Luís Filipe Vieira no Benfica. A diferença (e estamos a falar de e futebol e competição) é que, enquanto que Pinto da Costa é um vencedor, Vieira é um perdedor — que fala grosso mas voa baixinho.

2 Já se conhece de cor e salteado a ladainha de Luís Filipe Vieira: ele está no Benfica com grande sacrifício pessoal e familiar e só faz o obséquio de se recandidatar e recandidatar para não entregar o clube a «aventureiros» e «oportunistas» — que agora querem vir colher os frutos que ele semeou em anos em que «recuperou a credibilidade» para a «instituição» e tornou a «marca Benfica» a coisa mais apetecível do mercado português (não esquecendo as vitórias desportivas: o inesquecível campeonato Trapattoni e uma coisa chamada Taça da Liga, conquistada a meias com Lucílio Baptista).

Viera passa os anos de mandato a fazer a sua auto-propaganda pessoal, percorrendo o povo benfiquista de lés a lés, e produzindo densos discursos de exaltação da sua pessoa. E passa o último ano dos mandatos a alertar contra os traidores que lhe querem roubar o lugar — esse crime de lesa-majestade! — atrevendo-se a disputar eleições contra ele. Este ano, com eleições previstas para Outubro, Vieira detectou no ar um cheiro a «instabilidade» insuportável e a conspiração adiantada. E foi então que lhe ocorreu o brilhante contra-golpe de antecipar eleições, tão rápidas e tão surpreendentes que, pensava ele, iria apanhar toda a oposição de calças na mão, preparando tranquilamente as eleições de Outubro.

3 E tudo estava assim pacificamente orquestrado, quando, quarta-feira passada, por entre o folclore do candidato que aluga um avião para impressionar o pagode e outros que querem ser e não podem ou podem mas não querem, começa a circular o nome de um candidato absolutamente inesperado e verdadeiramente vindo de outro planeta: José Eduardo Moniz.

Durante toda a quarta e quinta-feira, os homens de Vieira tremeram na Luz: agora eram eles que não estavam preparados para aquele súbito desafio. Quinta-feira, quando cheguei à TVI, cerca das 18.30, o ambiente era de desalento entre a redacção. Havia um sentimento de orfandade antecipada no ar, mesmo entre os benfiquistas. Moniz foi o homem que ergueu a TVI do nada, o homem que é capaz como poucos de formar e liderar equipas, alguém que, como o próprio diria depois, quando se mete numa coisa é para ganhar. E, a esse hora da tarde, na TVI, como no Estádio da Luz, a convicção geral era de que ele ia mesmo avançar.

Às 20.10, ainda José Eduardo Moniz por ali andava, assistindo, como de costume, ao arranque do Jornal Nacional, e não dando a ninguém a mais pequena hipótese de adivinhar qual era a decisão que já tinha tomado e que comunicaria daí a pouco, em directo para o País. E às 21.05, ele começou a falar, de um hotel de Lisboa. Arrancou à José Eduardo: directo ao assunto, sem contemplações nem meias palavras, longérrimo dos jogos florais do «futebolês» a que estamos habituados, verdadeiramente vindo de outro planeta para desassossegar o planeta dos vencidos. Duvido que tenha havido um só benfiquista (todos traumatizados, e alguns já conformados, com anos sucessivos de mediocridade embrulhada em grandes triunfos e competência pessoal de Luís Filipe Vieira) que não tenha estremecido de entusiasmo apenas com o tom do discurso de Moniz. Durante cinco longos minutos, o Glorioso parecia poder estar de volta, já ao alcance da esquina e apenas pela capacidade mobilizadora daquele discurso. Se chegasse ao fim e dissesse, como parecia decorrer do discurso, «vou a eleições!», eu estou convencido de que já as tinha ganho. Houve ali qualquer coisa de «General Sem Medo» desafiando a ordem salazarenta das coisas. E o povo adora isso.

Mas, num golpe de verdadeiro anti-climax, Moniz concluiu o contrário: «Não vou». Não consegui escutar os suspiros de alívio que se devem ter ouvido em todas as imediações do Estádio da Luz, mas, dentro do estúdio, chegaram até nós os gritos de júbilo vindos da régie — e essa é a melhor homenagem que se pode prestar ao director-geral da TVI.

Chamado a comentar o assunto, disse isto — que continua a minha opinião, cinco dias volvidos: primeiro, que ficava contente, como colaborador da TVI, com a sua decisão de não se candidatar; segundo, que ficava igualmente contente, enquanto portista, pois que não tinha dúvidas de que, não só ele ganharia a eleição, como também de que seria um excelente presidente, como o Benfica há muitos, muitos anos, não tem. E acrescentei que, mesmo assim e a partir dessa não-candidatura, as coisas não voltariam a ser iguais para Vieira. Doravante, ele tem uma espada pendente sobre a cabeça, foi finalmente desafiado a sério e sem meias-palavras alguém disse alto e bom som a todos os benfiquistas que o seu presidente não estava ao nível da exigência e que só não era destronado imediatamente graças ao «golpe estatutário» a que lançara mãos, exactamente para o evitar. Não é preciso ser grande adivinho para perceber que tudo o que até agora foi tolerado a Vieira por falta de alternativa, vai deixar de o ser. Os benfiquistas já não vão conformar-se com mais palavreado oco e discursos de autopromoção: querem é ver resultados. E já. Eu, no lugar deles, quereria exactamente o mesmo.

4 Consciente de que assim tinha sido e de que o discurso de Moniz abalara a nação benfiquista, Vieira contra-atacou ontem, aqui, nas páginas de A Bola e por interposto José Manuel Delgado, citando «fontes benfiquistas». A tese bombástica, servida sem um estremecimento, é a de que Moniz seria um Miguel de Vasconcelos, servindo os Filipes de Espanha e pronto a abocanhar essa preciosidade disputada globalmente e que é «a marca Benfica» — através de uma fantástica conspiração, montada em tempo recorde, e que reuniria a Prisa, a Mediapro, a Cofina, o PSOE e a Caixa Geral de Depósitos. E Luís Filipe Vieira, claro, é o glorioso Duque de Bragança, futuro D. João IV, batendo-se como um leão solitário pela independência nacional e benfiquista. Como dizem os franceses, «il fallait y penser…!»

É preciso não conhecer José Eduardo Moniz para acreditar, um segundo que seja, que ele se dispusesse a ir para o Benfica para o vender aos espanhóis — e mais ainda à Prisa. E tudo isto, porque — explicaram «as mesmas fontes» a José Manuel Delgado — os espanhóis cobiçam os direitos televisivos dos jogos do Benfica, que pertencem a Joaquim Oliveira até 2013, «pela irrisória quantia de 8 milhões de euros/época» e querem «tomar conta da marca Benfica, a mais cobiçada em Portugal». Então, o negócio seria assim: os espanhóis entravam agora, pagando, no capital da SAD do Benfica, cuja maioria Moniz iria pôr em praça; depois, esperavam quatro anos pela caducidade dos direitos televisivos vendidos a Joaquim Oliveira; e a seguir, iriam vendê-los, por uma fortuna, à TVI — que entretanto, a Prisa teria vendido à Cofina. Mesmo dando de barato que a Prisa quisesse delamber-se do seu core-se-no-la que é a televisão, para se ir enfiar num clube de futebol, não consegui foi entender o papel da Cofina: para já, arruinavam-se a comprar a TVI por 100 milhões que a Caixa e não só lhe emprestariam, e depois voltavam a arruinar-se para ir comprar por uma fortuna os direitos televisivos que a Olivedesportos detém por uma ninharia. E com a «marca Benfica» conseguiriam o quê — o mesmo retumbante sucesso do «kit Benfica»?

Pensando bem, não sei, afinal, se Luís Filipe Vieira terá percebido o que lhe aconteceu, com aqueles dez arrasadores minutos de Moniz. Se terá percebido que o povo benfiquista já não vai lá com conversa fiada.

Miguel Sousa Tavares n' A Bola.

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