terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Da (in)justiça

ALGUÉM descobriu que Shakespeare é o que é porque era capaz de atirar a alma para um corpo qualquer e de imediato possuir-lhe sentimentos, apanhar-lhe paixões, escrevê-los. Também acho. Talvez por isso tenham andado pela minha cabeça personagens suas, a cruzarem-se umas nas outras — enquanto o dr. Ricardo Costa falava, pomposo, na TV. Quando ele, altivo, desdramatizou os «35 dias úteis» da suspensão preventiva de Hulk e Sapunaru — e reafirmou que o processo até fora «célere e sem tempos mortos», lembrei-me da Violeta da Noite de Reis murmurar:
— Quem sabe brincar com as palavras, depressa as torna atrevidas...

Quando ele, enleante, embrulhou os stewarts no papel (esfíngico) de agentes desportivos, para moldar as penas que moldou, lembrei-me do Holofernes de Canseiras de Amor em Vão traçar Adriano em cínico trejeito:

— Ele puxa pelo fio da verborreia até o pôr mais fino do que a fibra do seu argumento...

Quando ele, em caramunha, admitiu que quatro e seis meses até poderiam ser penas desproporcionadas e injustas, mas que não fizera a lei, simplesmente a aplicara, lembrei-me do fragor da Constança de Rei João:

— Quando não pode a lei fazer justiça é legal impedir que seja injusta...

Quando parei a matutar: se a lei é desproporcionada e injusta e a responsabilidade dela é dos clubes, porque é que o dr. Ricardo Costa não se demitiu para não a aplicar — despropor- cionada e injusta? – ao fundo do pensamento, pareceu-me ver Bassânio de O Mercador de Veneza, a desenvencilhar-se numa nuvem de fumo:

— Em questões da justiça qual é a causa ruim e impura que uma voz persuasiva não possa salvar?

Dois dias depois – percebi que continuava a haver futebol para lá de túneis e sofismas. Foi quando o FC Porto fez o que fez ao Braga, num jogo em que não jogou só no campo, jogou sobretudo na alma – começando logo a ganhá-lo nas palavras de Nuno Espírito Santo e nas lágrimas de Hulk...

António Simões n' A Bola.

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