terça-feira, 14 de outubro de 2008

Como falar de futebol?

1 - Como falar de futebol quando o mundo inteiro sustém a respiração para que não impluda um sistema financeiro que foi deixado em rédea solta, entregue a especuladores e gestores sem qualquer noção da finalidade social da riqueza? E como falar de futebol quando a FPF resolve, à 5ª jornada do campeonato, suspendê-lo durante três semanas, já depois de o ter suspendido outras duas à 2ª jornada — ou seja, cinco jornadas de campeonato, cinco jornadas de interrupção: que começo empolgante!
Mas falemos então da crise financeira e do que ela pode afectar o futebol. Aparentemente, e por estranho que possa parecer, eu acho que ela pode trazer mais benefícios do que prejuízos. Comecemos pelas más notícia evidentes para os nossos adversários, que, muitas vezes, são boas notícias para nós. Os grandes clubes ingleses, que têm dominado as competições europeias nos últimos anos, fruto das enxurradas de dinheiro que neles têm sido investidas (sobretudo no formidável quarteto Arsenal, Man. United, Chelsea e Liverpool), preparam-se para atravessar tempos difíceis, fruto das dificuldades que enfrentam os seus sponsors e patrões. Basta dizer que o grande patrocinador do campeão europeu, a AIG, maior seguradora mundial, foi salva da falência pelos governos americano e europeus à custa dos contribuintes e seguramente que não haverá agora descaramento para gastar o dinheiro destes a ajudar a financiar a vida de luxo do clube mais rico do mundo. Mas tendo também grande parte dos clubes ingleses de referência caído nas mãos de especuladores internacionais, que bancaram dinheiro suspeito a fundo perdido, com origem nos Estados Unidos, na Rússia, no mundo árabe ou na Ásia, os seus donos estão agora com dificuldades para manterem estes seus briquedos de luxo, enquanto os seus castelos de cartas financeiros se desmoronam como merecem. A falência ou o regresso forçado à poupança dos principais clubes ingleses e não só é uma boa notícia para os clubes das potências médias do futebol europeu, como os portugueses. É o fim de uma forma primária de concorrência desleal que, se por um lado tem dado muito jeito ao FC Porto e ao Sporting, por exemplo, para aliviar os seus défices de tesouraria e de gestão corrente, por outro diminui de forma drástica a sua capacidade competitiva ao mais alto nível europeu — o que, a prazo, significa também menores receitas e menor viabilidade económica. Eu, pessoalmente, tendo sido sempre contra esta sangria precoce de todos os nossos melhores valores, «raptados» pelos milhões dos irmãos Glazer ou do Sr. Abraamovitch, saúdo entusiasticamente o aviso do presidente da Federação Inglesa de Futebol de que os clubes ingleses têm de mudar de hábitos rapidamente, sob pena de um estoiro monumental. Até porque não acho sério que o Arsenal, que esmagou o FC Porto, tenha jogado apenas com um jogador inglês no onze que entrou em campo. Assim não vale… ou não devia valer.

2 - Também acho que, por tabela, podem ser boas notícias para os clubes portugueses — os grandes, sobretudo. Daqui para a frente, eles irão perceber que já não podem contar, em cada final de época, com negócios fantásticos de vendas dos seus melhores por preços que lhes permitiam disfarçar todos os erros de gestão, todos os tiques sumptuários e a vida de novos-ricos inconscientes que mantinham. Para clubes como o Benfica e o FC Porto, as notícias que vêm de fora têm de fazer soar uma campainha de alarme: é o requiem por uma política desportiva que passa por pagar salários a 60 ou 70 profissionais, dos quais só 15 ou 20 são aproveitados, por pagar vencimentos incomportáveis a jogadores que não o justificam, e por desprezar as escolas de formação, em benefício de mercados estrangeiros subitamente descobertos e que se transformaram em coutada de negócios de empresários que só funcionam num sentido: são exímios a impingir maus jogadores, mas depois são incapazes de ajudar os clubes a desfazerem-se dos «barretes» que lhes enfiaram.

Melhor está o Sporting, que não precisou de crise mundial para escolher o caminho da contenção de despesas e da aposta no aproveitamento da formação, consciente de que não conseguiria sobreviver com os encargos brutais da dívida acumulada em ilusões de grandeza passada. Digam os contestatários o que quiserem da gestão de Filipe Soares Franco, a mim parece-me que é a mais «verdadeira», séria e competente gestão de todos os clubes portugueses. A entrevista que ele deu ao Diário de Notícias de sexta-feira passada é absolutamente inatacável, sob esse ponto de vista. Que venha alguém explicar como é que se pode fazer diferente, tanto mais que, como confessa o próprio presidente do Sporting, o grande problema actual do clube é a falta de militância dos seus adeptos. Já há dois anos atrás o escrevi aqui e trata-se de uma constação pacífica de fazer, sem exaltações clubísticas: paulatinamente, o Sporting foi decaindo, enquanto o FC Porto crescia e, desde há vários anos, que se pode dizer com segurança que hoje, quer em termos de historial desportivo, quer em termos de capacidade financeira ou património, quer em termos de adeptos, sócios ou espectadores no estádio, o Sporting é o terceiro clube de Portugal, atrás do FC Porto (que, uma vez mais, na época passada, foi o clube com mais assistências nos jogos da Liga, à frente do Benfica e largamente à frente do Sporting). Não se pode viver com o esplendor do passado, mas com a realidade de hoje. Quando não se juntam mais do que 28.000 espectadores para assistir ao primeiro jogo em casa da Liga dos Campeões, é preciso «cair na real» e entender que, com menos receitas, terá de haver menos despesas. A única instituição do mundo, que eu conheça, que consegue governar-se eternamente ao contrário desta regra, é a Região Autónoma da Madeira. Só que isso tem um preço, embora aparentemente não lhes custe pagar: ela é a parcela de Portugal mais dependente da boa vontade dos portugueses, apesar das suas grandiloquentes afirmações e ameaças de independência. Sobrevivem da caridade do Orçamento de Estado, sustentada com os nossos impostos.

3 - Confesso que me incomoda um pouco o tom da campanha de promoção «patriótica» de Cristiano Ronaldo a nº 1 do mundo e ganhador inevitável da próxima Bola de Ouro. Faz-me lembrar aquelas tristes campanhas «patrióticas» do tempo do Estado Novo, quando, por exemplo, os jornais gastavam rios de tinta a explicar que a nossa (sempre miserável) canção concorrente ao Festival da Eurovisão não era melhor classificada porque havia «campanhas» insidiosas contra nós — ou dos ingleses, que eram uns aliados hipócritas, ou dos espanhóis, que eram maus vizinhos, ou dos franceses, que eram chauvinistas, etc, etc. Felizmente agora, quando se promove Ronaldo, está-se indiscutivelmente a promover um dos melhores ou talvez o melhor jogador do mundo. Mas, infelizmente, os métodos e argumentação são semelhantes: se promovemos o Ronaldo, é porque é de toda a justiça; mas se outros promovem o Messi ou outro, é porque montaram «uma campanha» em favor dele. Parece, pois, que a única campanha legítima é a nossa, as dos outros são um abuso.

Ora, eu, para estes patriotismos a propósito do futebol, como a operação montada por Scolari, nunca estou disposto a dar. Acho que deve ganhar quem for o melhor, seja Portugal ou um português ou não seja — embora, como é evidente, prefiro que o melhor seja um português ou a Selecção de Portugal. A seu tempo, o júri decidirá e, sendo o júri composto por todos os selecionadores do mundo, só por deformação pseudo-patriótica é que se pode começar a contestá-lo por antecipação. Neste momento, aliás, em que Ronaldo, até por força dos problemas físicos que teve, não está no melhor da sua forma, que fez um mau campeonato da Europa e que ainda não começou a rebrilhar nem no Manchester nem na Selecção, eu acho que há outros concorrentes de igual peso ao lugar mais alto do pódio. E, se me permitem a heresia, para mim o melhor jogador do mundo é, desde há três anos seguramente… o Leonel Messi. Terei direito a fogueira por ousar pensar isto?

Miguel sousa tavares n' A Bola


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