terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Escuteiros


1 Parece que meio País não faz outra coisa que não escutar, deliciado, conversas alheias. Se conheço as escutas? Bem, eu não conheço outra coisa, fui criado com as escutas telefónicas. Quando eu era pequeno, em casa dos meus pais, todos nós sabíamos e sentíamos que a PIDE escutava todas as conversas. Era o tempo dos telefones fixos e a tecnologia das escutas não estava desenvolvida ao ponto sofisticado a que hoje está: nós ouvíamos distintamente os «cliques» das gravações, quando a fita chegava ao fim, e às vezes até conseguíamos ouvir a respiração do PIDE de escuta. Também a correspondência da casa era aberta e lida e, por vezes, roubada (apareceu depois nos arquivos da PIDE). A sensação de ter a toda a nossa correspondência e conversas privadas devassadas por outrem não é explicável: é preciso ter passado por isso para o entender.
Quis o destino que, anos mais tarde, o meu primeiro emprego fosse justamente na Comissão de Extinção da PIDE/DGS, onde estive poucos meses — até ter percebido que havia forças políticas que tinham tomado o controlo da Comissão e do Forte de Caxias e cujo objectivo não era o de fazer justiça aos abusos da PIDE e levá-los a julgamento, mas, sim, o de guardar o material explosivo que a PIDE tinha reunido sobre diversos cidadãos e aproveitá-lo eventualmente em proveito próprio. O que tornava esse material explosivo era exactamente o conteúdo das escutas a que diversas figuras da oposição tinham sido submetidas anos a fio. Bastou-me ler dois ou três exemplos do conteúdo de escutas (e mais já não consegui ler) para entender esta grande verdade: não há ninguém, absolutamente ninguém, que não tenha conversas privadas que não podem ser expostas em público. As escutas policiais são uma forma de devassa e de violência sobre a privacidade alheia, que só circunstâncias absolutamente excepcionais e sob apertadíssimo controle judicial é que podem justificar. Infelizmente e à revelia do que a Constituição democrática veio estabelecer sobre a inviolabilidade da correspondência e o direito à privacidade, as escutas estão hoje banalizadas na investigação criminal, ao ponto de se terem tornado na prova absoluta, quando não única. Como muito bem escreveu o «Times», a propósito da investigação do «caso Maddie», a investigação criminal em Portugal continua ainda refém da técnica única da auto-incriminação dos suspeitos: ou pelas escutas das suas conversas ou pela confissão dos próprios — espontânea ou «induzida». Mas não apenas as escutas se banalizaram como método de investigação: banalizou-se a divulgação do seu conteúdo para a imprensa, ao arrepio dessa anedota chamada «segredo de justiça», banalizou-se a falta de controlo sobre o destino das gravações e sobre a sua efectiva destruição, em caso de arquivamento ou sentença transitada, como manda a lei. Rio-me sempre que vejo o nosso PGR, o dr. Pinto Monteiro, a anunciar «rigorosos inquéritos» depois de consumadas as violações. Também agora ele anunciou mais um inquérito, que fatalmente acabará em nada, para saber como é que as escutas do Apito Dourado chegaram ao YouTube e à imprensa. Eu acho que o inquérito deveria ter outro objecto: saber por que é que o sr. procurador não se incomodou antes a certificar-se que as gravações tinham já sido destruídas, como manda a lei? Aposto que qualquer dia temos aí publicadas as escutas das conversas entre José Sócrates e Armando Vara, que, todavia, foram mandadas destruir por ausência de indícios incriminatórios. Eu aposto…

Pois então, parece que meio País anda ocupado a perder horas do seu tempo a escutar as conversas que outros escutaram a Pinto da Costa e Valentim Loureiro. E apesar de, ao que dizem, elas nada conterem de novo em relação àquilo que, a conta-gotas e oportunamente, foi sendo divulgado ao longo do Apito Dourado, o interesse popular não diminuiu, antes pelo contrário. Não me admira nada e por duas razões: primeiro, porque o «povo» quer fazer justiça por suas mãos e não se conforma que a Justiça, ela própria, o não tenha feito (foi comovedor o texto do José Manuel Delgado, anteontem, a pedir ao povo que não condene sumariamente a Justiça por esta não ter condenado Pinto da Costa, pois que os juízes, coitadinhos, andam assoberbados de trabalho e às vezes distraem-se…); em segundo lugar, porque o prazer das escutas está em ouvi-las e não em lê-las: é isso que satisfaz os desejos de voyeurismo e devassa alheia de um verdadeiro escuteiro — é melhor do que espreitar pelo buraco da fechadura. Não, a mim não me admira nada que a PIDE tenha escutado livremente durante cinquenta anos e que a Ditadura se tenha assim imposto ao respeito de um povo que é capaz de transformar a devassa da intimidade alheia em desporto nacional.

2 Como sempre escrevi, o que fez o Apito Dourado nascer torto desde o princípio foi o carácter selectivo dos seus alvos. O Apito Dourado não visou apurar, de cima a baixo, as eternas suspeitas que pairam, e continuam e hão-de continuar sempre a pairar sobre o futebol português. Se esse fosse o objectivo, haveriam de ter sido escutados não apenas dois alvos — Pinto da Costa e Valentim Loureiro — mas, sim, dezenas deles. E houve um episódio sintomático que veio confirmar isto mesmo. A certa altura do entusiasmo jornalístico com o Apito, o «Público» publicou, inesperadamente, o teor de uma escuta entre Valentim Loureiro e Luís Filipe Vieira (apanhado por arrasto no telefone de Valentim). E o seu conteúdo não podia ser mais óbvio: Vieira telefonara a Valentim a pedir-lhe o afastamento de um árbitro escalado para apitar um Belenenses-Benfica e os dois juntos foram desfilando nomes de árbitros, até que, ao quarto nome, Vieira se deu, enfim, por satisfeito. Mas não sem que antes, e no meio da conversa, tivesse deixado escapar esta frase intrigante: «Como sabe, tenho outras maneiras de resolver o assunto». A divulgação desta escuta caiu como uma bomba no terreno de batalha errado. Nesse mesmo dia, Vieira convocou uma conferência de imprensa, onde se limitou a dizer que não respondia a perguntas nem falava dos factos, apenas avisava os benfiquistas que estivessem alerta contra essas «manobras»; porque mais haveriam de aparecer. E sucederam, então, três coisas curiosas: uma, é que não apareceu mais nada, ao contrário do que ele tinha previsto; outra, é que ninguém, no CD da Liga, achou que uma combinação de árbitros entre o presidente de um clube e o presidente da Liga (que lá tinha sido posto por aquele) violasse a «verdade desportiva»; e a terceira, é que nem o CD nem o Ministério Público acharam que houvesse qualquer interesse em chamar o presidente do Benfica para que este explicasse o que queria dizer com aquela frase de que tinha outras maneiras de resolver assuntos daqueles.

Pois é: há escutas e escutas. Ora, divirtam-se com estas!

3 Também parece que o célebre túnel da Luz tem incidentes gravíssimos e incidentes banais. Os do passado dia 20 de Dezembro foram gravíssimos, embora ainda não julgados. Já os do Benfica-Porto da época passada, parece que estão prescritos ou que não há prova ou que na altura não foram tidos como nada de mais — tal como outros que consta por lá terem acontecido. Sempre, sempre, nesse misterioso túnel da Luz, transformado em território decisivo para o desfecho do campeonato.

4 Na última página da edição de domingo de «A Bola» li um curiosíssimo artigo, que me deixou a meditar. Embora o mesmo seja anónimo (o que não é prática da casa), o seu teor aponta para alguém dentro do próprio CD da Liga (a menos que o autor seja um desses «fretistas» de que falava o texto de Rogério Azevedo na mesma edição). De facto, só alguém dentro do CD pode revelar um tão íntimo conhecimento do processo de averiguações aberto a Hulk e Sapunaru, ao ponto de falar na «abundante prova testemunhal» recolhida contra eles e acrescentar que, embora a lei não permita a incriminação com base nas célebres imagens nunca vistas mas já sobejamente conhecidas, o CD encontrará o expediente para se aproveitar delas. Mais curioso ainda é quando, para tentar justificar o injustificável escândalo de uma suspensão prévia que vai já em cinco jogos, se escreve que essa demora está «plenamente dentro de uma média que tem oscilado entre as quatro e as oito semanas, o que esmaga por completo a tese da extraordinária morosidade deste processo». Eu li e confesso que quem ficou esmagado fui eu. Primeiro, porque não é normal este jornal tomar uma posição de princípio, e tão veemente, sobre processos disciplinares em que nem sequer a acusação é ainda conhecida. Depois, porque bem gostaria que me dissessem quais foram os outros casos de suspensão prévia de jogadores por um período de quatro a oito semanas. E, enfim, porque em abono da tão invocada verdade desportiva e da verdade do futebol jogado em campo, eu acharia que «A Bola» mais depressa se bateria para que um jogador como Hulk não ficasse de fora do jogo dois meses, apenas à espera da sentença. E se, em vez do Hulk, fosse o Saviola?

MIguel Sousa Tavares n' A Bola.

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