terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A Europa da verdade

EM Julho passado viveu-se um episódio marcante no futebol português que eu, por mais anos que viva, hei-de lembrar sempre como um momento exemplar de anti-desportivismo: a tentativa consertada de Benfica e Vitória de Guimarães de impedirem o FC Porto de participar na edição deste ano da Liga dos Campeões. Mostrando exuberantemente o que entendem pela tal «verdade desportiva» que tanto apregoam, ambos os clubes tentaram usurpar, através de uma feroz batalha jurídica, o lugar que o FC Porto conquistara em campo, por mérito próprio e após um brilhante título de campeão, com mais de 20 pontos de avanço sobre aqueles que lhe queriam roubar o lugar.
TODA a argumentação se baseava numa condenação do CD da Liga, a qual, por sua vez, tinha, como sustentação principal e quase única, as declarações, à vista de todos determinadas por motivos de vingança pessoal da D.ª Carolina Salgado — cuja credibilidade é todas as semanas atestada pelos relatos das suas aventuras nas revistas sociais e pela denúncia de que já foi alvo, por parte de um juiz de instrução, de crime de falsas declarações. Mas esses detalhes não estavam, obviamente, ao alcance da informação e compreensão do Comité de Justiça da UEFA — o qual tinha apenas de se confrontar com uma condenação interna do FC Porto, de que a sua Direcção, avaliando mal os riscos, decidira não recorrer. E, não fosse o processo presente à UEFA mesmo assim aberrante do ponto de vista jurídico, Benfica e Guimarães teriam obtido na secretaria aquilo que tão pouco justificaram em campo. Estiveram quase a consegui-lo e, se isso tem sucedido, a injustiça seria dupla pois que, se a Liga portuguesa teve até este ano a faculdade de ver duas equipes entrarem directamente na Champions e uma terceira disputar a última pré-eliminatória, deve-o, principalmente, ao FC Porto, cuja carreira europeia nas últimas décadas tem acumulado pontos para tal.

ESTA semana, depois de estrondosa derrota do Benfica em Atenas, antecedida da não menos demolidora derrota caseira com o Galatasaray — que praticamente o colocaram fora da Taça UEFA — tornou-se clara a que teria sido mais uma consequência da vitória jurídica na UEFA: o futebol português teria perdido o seu melhor representante na Europa, a benefício de duas equipas sem estaleca para tal.

O Vitória de Guimarães (que, no início da tentativa de cambalacho jurídico uefeiro, pareceu revelar alguma vergonha em acompanhar o Benfica), trocou uma amizade de muitos anos com os portistas e o prestígio que justamente adquirira no final de um campeonato em que lutou pelo segundo lugar europeu com o Sporting até à última jornada, por uma nova amizade com o Benfica, que se vem revelando uma espécie de «beijo da morte» — como se uma justiça divina se tivesse encarregado de castigar os novos ptolomeus. Perdeu para o modestíssimo Basileia a possibilidade de entrar na Champions e, logo a seguir, perdeu para o estreante europeu Portsmouth a qualificação para a Taça UEFA. E assim perdendo em campo a admissão numa e noutra competição, mostrou porquê que a batalha jurídica em que acabou por se lançar, na esteira do Benfica, era afinal tão importante: porque era a única hipótese de chegar à Europa. Por portas travessas. Mas a maldição continuou internamente, onde o futebol escorreito do Vitória do ano passado desapareceu para parte incerta, substituído por um futebol sem garra e sem chama, sem sombra de dimensão europeia. Ao fim de dez jogos no campeonato, o Vitória ocupa o 11.º lugar, a catorze pontos do primeiro e apenas a três da despromoção, sendo a única equipa sem vitórias caseiras. Pior ainda, vê-se na situação humilhante de ter de mendigar ao seu novo aliado benfiquista o favor de lhe ceder alguns jogadores de refugo, em nome da solidariedade anti-portista demonstrada em Julho passado. Podia ao menos ter perguntado a outros que já experimentaram o abraço benfiquista, como o Estoril, o que se ganha com isso...

QUANTO ao Benfica, incensado em toda a imprensa desportiva lisboeta, com o seu treinador elevado a figura de referência (quando ganha, porque é bestial, quando perde porque não ficou satisfeito), cometeu o erro clássico de tomar os desejos e as louvaminhas por realidades. Na altura em que escrevo, ainda não jogou com o Vitória de Setúbal, mas prevejo que consiga enfim chegar ao primeiro lugar do campeonato, depois de três anos e meio de proclamações falhadas. Isso chegará, aparentemente, para reacender a esperança e a ilusão, fazendo os benfiquistas acreditar de novo que têm uma grande equipe — que, de facto, no papel e nos nomes dos jogadores, é bem melhor do que a do ano passado, mas que, na hora da verdade, tem mostrado sempre estar longe de ser uma grande equipa. O Olympiakos revelou antes uma equipa banal — como o Galatasaray e o FC Porto já o haviam revelado. Mas, quando não se quer ver nem ouvir, não se vê nem se ouve. O Benfica funciona como aqueles ditadores rodeados por uma corte de aduladores, sempre prontos a incensá-los. Se alguém destoa do coro e se atreve a dizer que o rei vai nu, sua majestade manda-os calar e ataca-os como inimigos a abater. E assim, quando chega o momento dos confrontos decisivos e o exército de sua majestade se revela incipiente e incapaz, fica tudo muito espantado, a gritar que foi batota ou a prometer que foi apenas um acidente de percurso.

É verdade que, infelizmente, também o meu FC Porto vem dando mostras crescentes de ter sucumbido à doutrina do despotismo iluminado na Direcção do clube — quem ousa criticar, mesmo o que é evidente, passa à condição de inimigo interno, antes de passar à de traidor, que é a antecâmara da condição de inimigo externo infiltrado. Quem apenas está habituado à liberdade própria, jamais entenderá o valor da liberdade alheia. E é tão mais fácil governar assim!

TODAVIA, e como não me tenho cansado de o repetir, há uma diferença essencial no FC Porto, mesmo que os seus métodos de gestão tendam perigosamente a aproximar-se dos de outros: a cultura de exigência desportiva que todos naquele clube — jogadores, técnicos, adeptos, gestores — praticam sem cedências. O FC Porto ganha mais que os rivais e bate-se na Europa do futebol como ninguém mais entre nós porque desde há muito que todos naquela casa sabem que, para ganhar, não basta querer e proclamar: é preciso trabalhar mais, saber sofrer mais, saber perder e saber ganhar. Foi assim que o FC Porto se transformou, de um clube de província, num campeão mundial. E isso, por muito que pontualmente o possa criticar, hei-de reconhecer sempre que foi obra de Pinto da Costa. Foi ele que trouxe essa cultura de exigência e de vitória para o FC Porto e que a fez passar, de geração em geração. Como aqui escreveu Vítor Serpa, sexta-feira passada, «o FC Porto é diferente porque a dimensão do seu futebol começa na cabeça dos seus jogadores e numa cultura de exigência interna, muito especialmente dos seus adeptos. No dia em que o FC Porto perder essa cultura de exigência será igual, no resultado e na falta de afirmação, aos seus tristes parceiros nacionais».

FOI por saber isso há muito tempo que eu pude prever aqui que o FC Porto em crise iria vencer em Kiev. E podia ter previsto também que iria vencer em Istambul, porque esse FC Porto que aparece cheio de personalidade e de coragem nos momentos da verdade não é fruto do acaso. Ano após anos, saem os melhores e a atitude mantém-se: só a bendita cegueira alheia é que pode ver nisso o resultado dos «apitos dourados» com que se vão entretendo e enganando. Deus os conserve assim por muitos anos!

Miguel Soua Tavares n' A Bola.

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