terça-feira, 29 de julho de 2008

A libertação dos escravos

Miguel Sousa Tavares n' A Bola:

1 - A chantagem - que não tem outro nome - que João Moutinho está a exercer sobre o Sporting é intolerável e bem andará a direcção da SAD sportinguista se não lhe ceder, sob pena de os clubes se tornarem praticamente ingovernáveis. Como dizia há dias Bobby Robson, «no meu tempo, um contrato era um contrato» e, nestes tempos de mercenarismo em que vivemos, em que o aperto de mão, a palavra de honra, a gratidão e o amor à camisola parecem ser tudo noções arrumadas no baú de alguma rara gente ainda bem educada e com princípios, se já um contrato escrito e assinado por ambas as partes também não serve de nada, então que decretem a lei da selva e venha o Sr. Blatter governar os clubes profissionais.
Moutinho nem sequer pode invocar a seu favor, ao contrário de Ricardo Quaresma e outros, o aliciante desafio profissional que o espera. O Everton é apenas o segundo clube de Liverpool, um clube mediano em Inglaterra, muito longe de aspirar a ter hipóteses no campeonato ou uma carreira na Champions. Desportivamente, Moutinho tem mais a ganhar no Sporting do que no Everton onde cairá num«buraco negro» de esquecimento do qual não sairá tão cedo porque, como irá descobrir, em Inglaterra, um contrato ainda é um contrato - e o Manchester United está a mostrá-lo com Cristiano Ronaldo. Só há uma razão para que Moutinho queira trocar o Sporting pelo Everton e essa é apenas o dinheiro. Fica muito mal a um capitão de equipa, cujo contrato foi melhorado recentemente e na vigência dele, que é acarinhado pelos sócios e pela direcção do clube, querer ir-se embora apenas por dinheiro. Já sei que, como disse Derlei, todos têm família, um futuro em que pensar, etc. Têm os jogadores de futebol e temos nós todos. A única diferença é que ninguém ganha as fortunas que eles ganham tão somente porque têm jeito para dar chutos na bola e porque, por sorte ou azar deles, não tiveram pais que os obrigaram a esquecer a bola para seguir os estudos.
O mais feio de tudo é a estratégia que o Everton e o empresário de João Moutinho, Pini Zahavi, vêm seguindo em relação ao Sporting. É a mesma estratégia do Real Madrid com Cristiano Ronaldo e, aparentemente, a do Inter em relação a Ricardo Quaresma. Podíamos chamá-la, inspirando-nos em Blatter, a estratégia da libertação dos escravos e consiste no seguinte: um clube , normalmente mais rico ou mais forte, quer comprar um jogador de outro clube, mas não quer pagar o preço justo por ele ou não pretende respeitar a vontade desse clube de não vender o jogador; logo, começam por seduzir o jogador oferecendo-lhe um ordenado milionário e dando-lhe volta à cabeça (o que não é difícil…); então e só então, abordam o clube do jogador e fazem-lhe uma proposta de compra muito abaixo da cláusula de rescisão ou do valor justo; perante a negativa do putativo vendedor, entra então em cena o próprio jogador, que começa a fazer declarações públicas de que se quer ir embora; confrontado com a situação de chantagem assim criada, o clube que tem contrato com o jogador fica encostado à parede: ou cede à chantagem e aceita vender mal, ou recusa e fica a braços com um problema interno de um jogador contrariado, que vai começar a fazer «fitas», a fingir-se lesionado e a criar um ambiente que é ofensivo para a dignidade do clube. É uma jogada perfeita, contra a qual praticamente não há defesa.
A nossa imprensa desportiva, que tão afincadamente tenta convencer a direcção portista a vender o Quaresma ao Inter a preço de saldo ou que tanto se bate pela «libertação» de Cristiano Ronaldo do Manchester, tem alguma responsabilidade na criação deste clima de «vale tudo» que parece estar a tomar conta da cabeça dos nossos jogadores, devidamente empurrados pelos respectivos empresários. Com um pouco mais de tino, a imprensa desportiva pensaria um pouco que assim, não só despovoamos o nosso futebol dos melhores intérpretes de nacionalidade lusa, como ainda se está a contribuir para a ruína financeira dos clubes. Pois se tanta gente diz e jura que a solução económica dos nossos clubes só pode ser a de formar jovens talentosos para depois os vender muito bem ao estrangeiro, se o negócio passa a ser arruinado por esta estratégia de rasga-contratos a todo o tempo, para quê investir na formação dos nossos jovens?

2 - Como aqui o notei no artigo anterior, enquanto Ricardo Quaresma vai aguardando o desfecho do braço-de-ferro do Inter com o FC Porto, Jesualdo Ferreira vai tentando habituar-se a viver sem ele e a formar uma equipa que, sem Quaresma, possa continuar a assegurar o índice de capacidade ofensiva, criativa e concretizadora a que o FC Porto nos habituou em anos recentes. Não é fácil, como mais uma vez se viu contra o Celtic. Com Mariano González, não há 4x3x3 que se aguente, porque o argentino é um trapalhão completo, que entra em campo com ar de quem já está cansado e corre com a cabeça em baixo e o corpo para trás em direcção a lado nenhum, totalmente falho de ideias, de rasgo e de visão de jogo. Foi a primeira e a pior contratação do FC Porto esta época.
Das restantes contratações portistas- cujo número se aproxima já do total da época passada: onze jogadores, uma equipa completa- a ideia que fica destes primeiros jogos de pré-época é que, pelo menos, não acontecerá o mesmo que na época passada, quando dos onze jogadores contratados, nenhum teve lugar na equipa principal. Felizmente, este ano, há condições para integrar dois ou três e isso é absolutamente necessário porque, para já, Bosingwa e Paulo Assunção têm de encontrar substitutos. A eventual vaga de Quaresma poderá ter de ser resolvida com uma mudança de sistema de jogo, mas as ausências de Bosingwa e Paulo Assunção têm mesmo de ser preenchidas. Sapunaru tem sido dos que melhor se têm integrado e parece-me que o lugar de defesa-direito lhe fica bem entregue. No centro da defesa, Rolando é também reforço e é natural que, na primeira ocasião em que falte Pedro Emanuel, Jesualdo lhe entregue o lugar (e não antes apenas por respeito pela antiguidade, que ali é um posto). No lugar de «trinco», as coisas estão mais complicadas: Bolati não serve, como está mais do que visto, e Guarin, ao contrário do que a crítica tem dito, a mim não me convence: muita precipitação, muito afogueamento, timings sempre errados para entrar à bola ou entregá-la, jogo muito faltoso. Resta Fernando, que ainda não teve ocasiões para se mostrar suficientemente, ou Raul Meireles, que fez a posição durante cerca de 25 minutos contra o Celtic e bem melhor do que Guarin. Cristian Rodriguéz é sem dúvida reforço e dos bons: com Quaresma, formará duas alas do trio atacante verdadeiramente notáveis; sem Quaresma e em 4x4x2, Jesualdo provavelmente dar-lhe-á o lugar de ala mais recuado, sobre o meio-campo. Enfim, só para esse sistema alternativo é que se justifica a incrível contratação do desconhecido Hulk, por números que metem medo: ou se trata de um novo Jardel, surpreendentemente descoberto nas profundezas do campeonato japonês, ou se trata do maior barrete de sempre.
A conclusão é esta: com Quaresma, o FC Porto terá este ano uma super-equipa, bem melhor do que as de anos anteriores. Sem Quaresma, o FC Porto é, para já, uma boa equipa, com futebol organizado (nada a ver com o Benfica, por exemplo), mas falha de capacidade de chegar ao golo. Se Hulk for o génio que os milhões nele investidos levam a esperar, esse problema pode ficar resolvido; se o não for e se não houver Quaresma, pode-se regressar aos tempos de Co Adriaanse: muito ataque e muito poucos golos.

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