1 Num fim-de-semana talhado à medida para ir à caça, a grande notícia foi a eliminação do Benfica da Taça, às mãos do Vitória de Guimarães e em pleno estádio da Luz. Parabéns ao Vitória que, nos últimos dois jogos que disputou, um para o campeonato e outro para a Taça, derrotou os dois líderes do campeonato. O Sporting chegou ao intervalo, na estreia de Carvalhal, a perder miseravelmente com uma equipa de que eu (peço desculpa) nunca tinha ouvido falar, assim tipo-Inválidos do Comércio: e lá deu a volta com um livre directo e um penalty. Quanto ao FC Porto, obrigado a ir a jogo em condições inqualificáveis sob pena de ser extraído da Taça por falta de comparência, mas lá conseguiu ver provado, em cima da hora, que tinha razão nos seus protestos. É incrível como a mesma Federação que, com inteira razão, se queixou das condições do estádio e do campo onde Portugal teve de jogar a segunda mão do play-off contra a Bósnia, tenha autorizado que o campeão nacional — uma equipa de profissionais pagos a peso de ouro e tão útil à Selecção — fosse forçada a disputar um jogo a eliminar da Taça naquele inconcebível campo da Oliveirense que as fotografias retratavam. Caramba, pois se está ali mesmo ao lado, o Estádio de Aveiro, eternamente às moscas e que não foi escolhido porque a Oliverirense diz que o aluguer é caro, a Federação que pague o aluguer. Não foi ela, afinal, que se bateu pela existência do luxuoso e inútil Estádio de Aveiro?
2 Felizmente, os meus desejos aqui expressos na semana passada cumpriram-se: vencemos na Bósnia, ganhámos o passaporte para a África do Sul, que tão tremido esteve durante tanto tempo. E ganhámo-lo com uma das mais convincentes exibições de toda a campanha de qualificação. Num ambiente de cortar à faca, num relvado escolhido à medida para prejudicar o melhor futebol, e num estádio preparado para nos intimidar desde o primeiro minuto, a Selecção uniu-se como um só — sem embargo de uns terem sido bem melhores do que outros. Mas, sinceramente, em matéria de esforço, de entrega e de consciência de que aquela era a hora da verdade e já não consentia mais adiamentos, penso que todos foram grandes, dignos da hora. Por uma vez, não entrámos no jogo naquela atitude de ver em que paravam as modas, não nos intimidámos nem demos algumas vezes mostras de ter medo do adversário e medo de ousar vencê-los, e nem sequer, ao contrário do que é regra, deixámos de atacar depois de chegar à vantagem. Ganhámos por um, mas bem merecíamos ter ganho por dois ou três — ao contrário do que sucedera na Luz, cinco dias antes.
3 Não me incomoda nem me regozija que a Selecção que ganhou no play-off a passagem para África não tivesse um único jogador do Benfica no onze inicial de ambos os jogos. A Selecção é a Selecção, e eu já torcia por ela em 66, quando era formada por dez jogadores do Benfica e um guarda-redes do Belenenses. Mas, é claro que gosto de ver uma Selecção com jogadores do meu clube e é claro que fiquei ainda mais feliz por ver que os dois jogadores que facturaram os dois golos da nossa passagem para África eram ambos do FC Porto. O Raul Meireles fez, na Bósnia, uma das melhores exibições que já lhe vi e, francamente, acho que é preciso uma grande imaginação ou má-vontade para não o considerar como o melhor de todos nesse jogo decisivo. E o Bruno Alves, com duas soberbas exibições, esse, dá-me um gozo particular, porque agora já não estou sozinho a considerá-lo um dos melhores centrais do mundo e com uma atitude em campo que, desculpem-me lá, é «a escola do dragão» em todo o seu esplendor. Pois, mas quando ele joga pelo FC Porto, cá dentro, é apenas um «caceteiro» e um jogador que, se pudessem, passava metade do campeonato de castigo. Mas, quando joga por Portugal, aí todos se calam, porque está bem de ver que, com onze como ele, esta Selecção iria a África para deixar marcas.
4 E agora, uma questão pessoal com o Sr. Eduardo — que, embora o não pareça, tem idade para ser meu filho.
Eu escrevi aqui, a semana passada, que, na minha modesta opinião, o Eduardo não me dava confiança para defender a baliza de Portugal, porque domina tão bem o espaço aéreo quanto o seu antecessor Ricardo. Ou seja: não faz ideia onde isso fica nem o que fazer com esse problema. E dei o exemplo das duas bolas cabeceadas à trave da nossa baliza no jogo da Luz — em especial a primeira, onde a responsabilidade dele foi total e que, se tem tido a consequência mais provável, que era ter acabado em golo, talvez agora não estivéssemos a festejar a presença no Mundial do ano que vem. Mas esta foi e é apenas uma opinião técnica e de «treinador de bancada». Outros pensarão diferente, outros (a grande maioria) pensa o mesmo, mas não se atreve a dizê-lo. Porém, foi o suficiente para que, na euforia da vitória na eliminatória (para a qual pouco ou nada contribuiu, para além de ter desviado com os olhos as bolas para a trave), o Sr. Eduardo desembestasse contra os «abutres» que tinham ousado criticá-lo. Ora bem, quero dizer algumas coisas ao Sr. Eduardo.
Primeiro, que é muito feio, quando se quer atacar alguém, começar pelo insulto e nem sequer pôr o nome ao destinatário. Eu, quando quero criticar alguém, como o fiz com ele, não apenas não insulto nem chamo nomes, como também escrevo o seu nome e assino o meu por baixo.
Depois, quero-lhe dizer que ele não deve saber bem o que é um abutre. Um abutre é um animal que se alimenta de cadáveres de outro animal, e eu, tanto quanto me recordo, não considerei o Sr. Eduardo morto para o futebol e ainda menos cadáver: apenas lhe sugeri que aprendesse o que fazer com as bolas altas cruzadas por cima da pequena área, porque desconfio que isso pode ser importante na vida de um guarda-redes. Mas, se ele acha que não é importante ou se se considera a si próprio um cadáver futebolístico, sem ressurreição possível, o problema é seu.
A seguir, queria explicar ao Sr. Eduardo uma coisa óbvia, que ele, todavia, parece não ter ainda percebido: a sua, tal como a minha, é uma profissão de exposição pública constante. Ambos actuamos à vista do público, o qual paga para apreciar ou criticar livremente o nosso desempenho. O mesmo acontece com os artistas de circo, os músicos, os actores de teatro, etc, etc. O que caracteriza a função específica do guarda-redes Eduardo é que ele é muito mais bem pago do que todos os outros — o que faz que seja maior a sua responsabilidade e muito mais exposto à critica o seu desempenho. Ou ele esperava que lá pelo facto de Carlos Queiroz lhe ter confiado a baliza da Selecção, tinha passado a ficar imune à critica, como se fosse uma florzinha de cheiro? Ponha os olhos no Ricardo Carvalho que, na hora da vitória (para qual contribuiu bem mais) afirmou que compreendia e reconhecia razão às criticas que os adeptos da Selecção tinham feito. Não por acaso, o Ricardo Carvalho joga num país que é a mais antiga e nunca interrompida democracia do mundo e onde a crítica futebolística é a sério e não a brincar, feita de salamaleques. Se se acha intocável, acima de qualquer crítica, com direito a passar impune, quer jogue bem quer jogue mal, escolha outra profissão. Há trabalhos mais fáceis — só não são é tão bem pagos.
E, finalmente, queria dizer ao Eduardo o seguinte: para representar Portugal, no futebol ou no resto, não basta estar profissionalmente qualificado para o fazer. É preciso também ter um comportamento cívico à altura da responsabilidade. Hoje mesmo, também eu estou em Barcelona, a representar Portugal, no meu domínio específico: numa conferência literária organizada pelo Instituto Cervantes, de Espanha. Não passa pela cabeça de ninguém que, se no final a minha intervenção for criticada, eu trate os críticos por abutres. Julgo que já lá vai o tempo em que os jogadores de futebol se achavam umas vedetas acima do comum dos mortais, com direito perpétuo a serem venerados, fizessem o que fizessem ou dissessem o primeiro disparate que lhes viesse à cabeça. Acorde, rapaz, o tempo dos cromos da bola já lá vai! E nunca se esqueça disto: quem mantém o futebol vivo não são os dirigentes, nem os patrocinadores, nem sequer os jogadores: são os adeptos. Nós somos os únicos que estamos no futebol por amor à camisola e sem nada esperar em troca. Todos os outros vão e vêm e são sempre substituíveis.
Miguel Sousa Tavares n' A Bola.
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