quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Ser sportinguista é freudiano

1 Os sportingistas passaram quinze dias a discutir o árbitro do jogo com o Porto, indiferentes ao facto de já ninguém os escutar. Começaram por discutir a nomeação, depois qualquer coisa de não muito explícito sobre a arbitragem do próprio jogo e, finalmente, as consequências disciplinares das ofensas que lhe dirigiram. Veio entretanto um jogo europeu, contra o Hertha de Berlim, cuja exibição foi tão entusiasmante que eu adormeci a ver o jogo ao fim de quinze minutos e no dia seguinte li nos jornais que Paulo Bento tinha dito mal da própria equipa, os jogadores também, e o público assobiara-os convictamente. Também e segundo rezam as crónicas, a escassa vitória de 1-0 ficou a dever-se, em boa medida, ao facto de o árbitro ter feito vista grossa a um penalty favorável aos alemães — mas sobre isso e como de costume, já os sportinguistas não se pronunciaram. E veio a seguir o empate caseiro com o Belenenses e uma exibição a que resisti dez minutos sem adormecer. Mas é garantido que, à mais pequena oportunidade ou pretexto, lá estarão eles outra vez a discutir uma arbitragem. Ser sportinguista, hoje em dia, é qualquer coisa que tem laivos de distúrbio freudiano.
O habitual segundo classificado do futebol português vive num limbo onde não alcança nem o esplendor das vitórias portistas nem o descalabro das derrotas benfiquistas; não tem o espírito de conquista do FC Porto nem a arrogância de prima-dona do Benfica, que sempre se anuncia como o próximo campeão. Sem dinheiro nem massa associativa para outros atrevimentos e sem o aventureirismo suicidário de outros, o Sporting tem preferido, prudentemente, viver do que vai tendo (sobretudo da sua tão louvada escola de jogadores) do que lançar-se em operações desesperadas de tudo-ou-nada. O resultado tem sido o de que não conquista nada, mas também não perde tudo. Tudo visto e ponderado, o saldo não tem sido negativo e uma coisa há que convém não esquecer: um título ganho pelo Sporting, com meios financeiros substancialmente inferiores aos dos seus dois rivais, teria muito mais valor do que um título arrecadado por estes. Mas para quem já foi «grande» do futebol português (no século passado), para quem a tradição dos bons velhos tempos tinha reservado uma quota de 25% dos campeonatos e só enfrentava a concorrência do rival da Luz, compreende-se que não seja fácil habituar-se a este estatuto de eterno-vencido-jamais-esmagado.

Em minha opinião, o Sporting enfrenta um futuro negro: a prazo não muito distante poderá mesmo vir a extinguir-se como clube de referência no futebol português — tal qual como o PSD poderá vir a extinguir-se como partido de governo. Ambos estão perante problema idêntico: a falta de sustentabilidade. O PSD desprovido de base ideológica, o Sporting de base clubística.

Aceitar esta realidade, esta morte lenta, não é fácil. É mais do que compreensível que os sportinguistas — se bem que compreendendo as dificuldades financeiras e o próprio esvaziamento da mistica clubística (basta olhar para as bancadas de Alvalade ou lembrar o que dizia Soares Franco) — não se habituem facilmente à ideia de terem ficado irremediavelmente para trás na corrida ao futuro. E daí esta obsessão com as arbitragens, este delírio de calimeros, que mais não é do que um reflexo freudiano de fugir à realidade e encontrar um factor alheio, um inímigo externo, que os impede de serem quem eram. O delírio foi levado tão longe que se transformou numa cultura do clube, numa condição natural de um sportinguista. O sportinguista começa a contestar o árbitro antes mesmo de o jogo começar, começa a assobiá-lo aos dois minutos de jogo e, se não triunfa, já se sabe que o culpado único é o homem do apito. Quando fala de futebol, o sportinguista diz sempre «o Sporting, o clube mais perseguido pelas arbitragens…» e já nem se preocupa em justificar porquê ou sequer em convencer quem quer que seja dessa verdade adquirida. Para ele, é doutrina assente que, se o Sporting não é campeão, digamos a cada três anos, é porque os árbitros não deixam. E esta «verdade» não é discutível. Não importa que lhes lembrem as tantas outras vezes em que o Sporting é beneficiado, que lhes lembrem que muitos dos árbitros que tanto contestam até são conhecidos por serem sportinguistas (pelo contrário, ainda desconfiam mais), ou que lhes lembrem o pífio desempenho internacional dos leões, que têm apenas para apresentar uma obscura Taça das Taças, conquistada há 40 anos atrás, graças a um canto directo de um senhor chamado Morais. Nem sequer interessa, claro, olhar para exibições como as que fizeram contra o Hertha e o Belenenses — e que são bem frequentes — e perguntar-lhes se acham que a culpa de não reinarem como leões será mesmo e só dos árbitros. Eles já não vão mudar. E, quando manifestamente já nem a arbitragem serve como desculpa então surge a revolta interna — contra jogadores, treinador, dirigentes e até um presidente acabado de tomar posse a quem exigem, seja lá como for, o milagre instantâneo de inventar uma equipa de campeões sem dinheiro nem sócios nas bancadas.

2 Perdendo em Atenas, o Benfica não comprometeu por aí além as suas hipóteses de passar à fase seguinte da Liga Europa, num grupo mais do que acessível. O que perdeu, e uma vez mais, foi a possibilidade de arrecadar pontos fáceis para o ranking dos clubes portugueses na UEFA. Se olharmos a relação entre os pontos ganhos na UEFA e as participações havidas, o Benfica é de longe o maior beneficiário… do esforço alheio. Se alguém quiser contar com os pontos ganhos pelo Benfica para chegar a uma qualificação europeia, bem pode esperar sentado. Em contrapartida, não fossem os pontos conquistados nos últimos anos por Sporting, Braga e, sobretudo, FC Porto (olha quem!) e o Benfica teria ficado algumas vezes, em matéria de participação europeia, pelos Troféus Amizade ou Guadiana.

3 Já o FC Porto, o único clube com estatuto europeu do nosso futebol, não perdeu a oportunidade de somar três pontos no confronto com o Atlético de Madrid. Não venceu com brilhantismo, mas com todo o mérito e com a segurança e a naturalidade de quem, de facto, já está habituado aos altos palcos do futebol europeu. Uma vitória que começou numa notável tranquilidade defensiva, face a um ataque que mete respeito (Aguero, Forlán, o «Bota de ouro» europeu, Simão, Maxi Rodriguéz) e que se consumou graças aos dois únicos jogadores que, do meio-campo para a frente, podiam fazer a diferença: Hulk e Falcao. Os mesmos, aliás, que viriam a resolver, no domingo, o jogo em Olhão. Eles, mais os dois centrais de luxo ao dispor de Jesualdo — que defendem com classe, aguentam as fífias do Helton sem estremecerem de susto e ainda vão lá à frente marcar golos — conseguiram fazer disfarçar as baixas de Cristián Rodriguez e Silvestre Varela. E a verdade é que, sem eles, o FC Porto foi capaz de levar de vencida o Olhanense, o Atlético de Madrid e o Sporting, que deixou já a cinco pontos de distância. Também é verdade que continua a três pontos do Benfica e a quatro do Braga, mas não só a sorte do Braga não vai durar para sempre, como a infindável série de jogos fáceis do Benfica em breve terá fim também.

Miguel sousa Tavares n' A Bola.

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