terça-feira, 13 de outubro de 2009

O suave milagre

1 Na verdade, não foi apenas um, mas sim três suaves milagres que coincidiram no passado sábado para subitamente dissiparem o nevoeiro que envolvia o caminho da Selecção e abrir uma estrada de luz que, agora sim, conduz a direito até à África do Sul, no ano que vem.
Primeiro, foi a vitória da Dinamarca sobre a Suécia, alcançada a 11 minutos do final, colocando logo Portugal ao alcance do terceiro lugar no grupo; depois, foi a própria vitória da Selecção sobre a Hungria, apenas confirmada no último quarto-de-hora e fazendo-nos subir mais um degrau, para o segundo lugar, e, pela primeira vez, ficarmos em posição de qualificação; enfim e igualmente importante, a quebra da invencibilidade da Inglaterra em Kiev, permitindo à Ucrânia ultrapassar a Croácia e, simultâneamente, catapultando-nos para o primeiro grupo do play-off: aquele onde estão os cabeças-de-série, que irão disputar um lugar no Mundial com os mais fracos dos segundos classificados. Uma conjugação de circunstâncias notável, na qual o menor mérito acabou por ser o nosso.

A Selecção entrou no relvado da Luz sabendo já da derrota da Suécia, com 50.000 pessoas nas bancadas, os jogadores aplaudidos e o seleccionador assobiado. Aparentemente, a opinião pública não tinha dúvidas: a equipa, os jogadores, justificam amplamente o Mundial, o problema é o seleccionador, que não sabe aproveitar a belíssima mão-de-obra que tem à disposição. No final do jogo, com a vitória na mão e a qualificação à vista, a opinião mantinha-se. Por exemplo: a grande exibição de Pedro Mendes exemplificava a excelência dos jogadores que temos; a sua convocação só agora demonstra como o seleccionador anda distraído. Bom, distraído devo andar eu, porque não vi ninguém, em lado algum, em momento algum, que se tivesse lembrado de sugerir a convocação de Pedro Mendes…

O que eu vi, isso sim, foi mais uma exibição falhada desta Selecção dita de luxo, em que todos os jogadores, um por um e com raras excepções, jogam sempre pior na Selecção do que nos respectivos clubes. Contra a modestíssima equipa da Hungria — ataque inexistente, meio campo banal e defesa com muitos jogadores mas fraca qualidade — chegámos ao golo através de uma fífia do guarda-redes e dos centrais, no primeiro remate que fizemos à baliza e um dos raros de toda a primeira parte. Tivemos uns bons dez minutos no início da segunda parte e, quando já nos preparávamos para sofrer até final segurando aquele tangencial golo, surgiu o passe de morte de Bruno Alves e o golo feliz de Liedson, que permitiram enfim um imenso suspiro de alívio do Minho a Joannesbourgo.

Mas quem jogou bem, ali, quem mostrou estar ao nível das ambições de um Mundial? Pedro Mendes, primeiro que todos — a grande surpresa e o pilar da equipa; Simão, e apenas ou sobretudo porque esteve de pé-quente na finalização; e os dois centrais, Ricardo e Bruno, impecáveis a defender, excelentes a atacar. Nada mais. Eduardo ia entregando o ouro ao bandido, num jogo em que quase nada teve que fazer, quando saíu em falso e permitiu um cabeceamento à trave da baliza abandonada; os laterais foram um desastre; Liedson e Meireles apagados; Deco simplesmente desastrado e Ronaldo, mesmo levando em conta a lesão e o pouco tempo que esteve em campo, seguia para mais uma exibição falhada ao serviço da Selecção. E este panorama tem-se repetido de jogo para jogo, com a curiosa excepção do jogo inaugural contra a Dinamarca, em que tão bem jogámos e tão mal perdemos. Mas, daí para cá, a Selecção de Carlos Queiroz nunca deu mostras em campo de ter o valor e a capacidade suficientes para lutar pelo seu destino, em lugar de esperar que as coisas acontecessem por si mesmas. Assim, fica difícil mandar as culpas para cima de um seleccionador que, ao contrário de Scolari, junta uma equipa que reune o consenso geral e espera sempre que eles joguem ao menos qualquer coisa de semelhante àquilo que estamos habituados a vê-los jogar pelos seus clubes. A única crítica que eu consigo fazer a Queiroz é a de ele não ter, quando tal seria recomendável, a coragem de prescindir de alguns imprescindíveis que chegam ali e só desiludem: se Ronaldo ou Deco não estão em forma ou manifestamente estão a atrapalhar a fluidez do jogo, pois que os tire ou os deixe de fora! Será que o mundo acabava?

Enfim, os milagres sempre existem e todos confiamos que amanhã em Guimarães, contra Malta, não haja nenhuma brincadeira do tipo-Albânia. Pelo contrário, seria bem bom que a Selecção fizesse um jogo cheio, capaz de reacordar um país que já estava semi-descrente e ganhar aí o ânimo suficiente para ultrapassar o play-off que se seguirá e assinar a folha de presenças na África do Sul. Não basta apregoar ao mundo que somos óptimos: é preciso demonstrá-lo, de quando em vez.

2 A lesão de Cristiano Ronaldo ao serviço da Selecção portuguesa tem todos os ingredientes para deixar os responsáveis do Real Madrid à beira de um ataque de raiva. É que ele já veio lesionado, não tendo disputado o último jogo pela sua equipa, devido à lesão. E os 27 minutos que esteve em campo contra a Hungria pioraram a sua situação: agora vai estar parado um mês, pelo menos, falhando seis jogos do Real, entre os quais os dois importantes confrontos com o Milan para a Liga dos Campeões. E Ronaldo custou ao Real 96 milhões de euros e ganha milhão e meio por mês… Mesmo com o seguro de que os madrilenos dispõem e accionaram e com a modesta ajuda do seguro da FPF, esta é a situação clássica que os clubes tanto temem, quando «emprestam» os seus «activos», como agora se diz, às Selecções. Situação parecida viveu Cristian Rodriguéz, ao serviço do Uruguai, esta semana. Sem jogar pelo FC Porto há um mês, ausente dos últimos quatro jogos do clube, mesmo assim foi convocado por Oscár Tabarez. A diferença é que não chegou a entrar em campo contra a Bolívia e tudo o indica que também ficará de fora no decisivo confronto em Montevideo contra a Argentina de Diego Maradona. Mas acaba por fazer uma viagem intercontinental inútil e por interromper o tratamento no departamento médico do FC Porto, com manifesto prejuízo para o clube que, neste caso, nem sequer pode accionar seguro algum.

Com o que os clubes investem hoje em jogadores e com a fortuna que lhes pagam, um dia este problema irá ter de ser encarado a sério e a bem ou a mal. Sobretudo, porque cada vez são mais as competições inventadas pelas Federações e os jogos particulares onde exibem as «suas» vedetas mundiais. As Federações usam e exibem e os clubes pagam. Em nome de um «dever patriótico» que, aliás, cada vez é mais difícil de justificar, quando se olha para a composição «nacional» de algumas Selecções — Portugal incluído.

3 E, falando ainda de Selecções: sintomático do panorama do nosso futebol foi a constituição da equipa portuguesa que defrontou a Hungria: dois jogadores do FC Porto, um do Sporting (e naturalizado português) e nenhum do Benfica (acabaria por entrar, já com o jogo decidido, Nuno Gomes, cuja reforma da Selecção só foi adiada devido à reforma de Pauleta e ao total deserto de pontas-de-lança, que levou até à invenção de Liedson como português). Mas o Benfica, que há uns anos atrás Vale e Azevedo jurava que teria rapidamente «a espinha dorsal da Selecção», o Benfica que, em pleno Estádio da Luz, não tinha um único jogador no onze inicial da camisola das quinas, tinha, no mesmo dia e à distância de um continente, dois titulares a jogar pela Selecção do Brasil e outros dois pela Selecção da Argentina… O clube mais portugês da Selecção acaba por ser assim o… Chelsea, de Londres, que forneceu três jogadores titulares contra a Hungria: Ricardo Carvalho, Bosingwa e Deco.

Miguel Sousa Tavares n' A Bola.

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