terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Passe ou drible

PARA mim, no futebol, o drible é um encanto e nunca deixará de ser o doce recorte de uma imagem: Garrincha, na poesia que Armando Nogueira tirou das suas pernas tortas: «Saibam os matemáticos que muitas vezes ele parecia deixar no meio do caminho seu próprio centro de gravidade; e continuava, em pé, fluente como uma queda de água. Lançado no processo, transfigurava-se: era Chaplin, esculpindo no vento uma sucessão maravilhosa de gestos cómicos; era o toureiro, inventando verónicas que a multidão saudava, cantando olé. Chegava à linha de fundo, os beques cercando a área, o espaço minguando... um metro, meio metro — «ele não tem mais campo, vou dar o carrinho agora». Amarga ilusão: para um drible dele, a superfície de um lenço era um latifúndio...»
Talvez por ser cada vez mais raro tropeçar em beleza assim — sempre que olho para um jogo descubro-me, nostálgico, na esperança de que, ao menos num instante breve, furtivos me apareçam fantasmas dele, para me deliciar. Mas, de quando em quando, chega-me o sublime por outro lado – pelo passe em vez do drible. E penso: se o drible é a sublevação, o golpe estonteante que é capaz de desfazer um adversário de cada vez e o passe é o truque sereno que pode destroçar uma defesa inteira de um impulso só; se o drible é o verso provocador no pé do poeta que subverte a geometria do espaço e o passe é o enleio do malabarista que com um dom de olhar absoluto vê arco-íris onde outros vêem apenas becos sem saída – pergunto: então o que é mais importante, o drible ou o passe? Resposta fechada, redonda, poucas vezes tenho. Sábado, na Choupana, tive. Deu-ma Rúben Micael – que com a bola a sair de si plácida, a rasgar terrenos exacta e transparente, pôs no FC Porto o que o FC Porto há meses não tinha: um meio-campo a respirar, em vez de meio-campo a soluçar. E isso, seja em passe ou em drible, é sempre a forma mais fácil (ou a única?) de chegar ao golo sem ser por caprichos do destino...

António Simões n' A Bola.

Sem comentários: