PARA o senso comum, senador é alguém cujo nome, estatuto ou posição lhe garante uma credibilidade acrescida perante os outros. Em matéria de opinião, por exemplo, um senador deve ser escutado com mais atenção, porque, tenha razão ou não, é suposto ter uma opinião mais isenta, mais ponderada e mais credível que o comum das pessoas. Foi certamente a pensar assim que a Direcção de A BOLA decidiu, já há uns tempos, introduzir às sextas-feiras as colunas dos senadores — um por cada clube grande. Todos, sem excepção, são figuras de valor intelectual e de carácter acima de qualquer controvérsia. Mas há uma diferença entre eles: Rui Moreira é simplesmente adepto portista e da chamada «ala critica» da respectiva direcção (que lida tão mal com as criticas quanto o azeite liga com a água); já Rogério Alves é membro dos actuais corpos gerentes do Sporting, no cargo de presidente da Assembleia Geral, e Sílvio Cervan é mesmo membro da actual Direcção do Benfica, ou seja, responsável directo pela sua gestão. E isto coloca um problema não escamoteável.
Há uma diferença entre independente e isento — neste caso e, a meu ver, essencial. Eu, por exemplo, desde o primeiro dia que aqui comecei a escrever, que tornei claro o meu estatuto: não sou nem passaria a ser independente, visto que tenho uma filiação clubística e é bem sabido como a paixão clubística tolda a independência de julgamento (a todos, e não apenas aos portistas, como costumam decidir os outros...). Mas, não sendo independente, nunca deixaria de ser isento — não apenas porque não ocupo e nunca ocupei qualquer cargo no meu clube, no seu jornal, televisão ou outros apêndices, e porque, também, e conforme julgo ser público e notório, não presto vassalagem nem silêncio aos seus dirigentes ou técnicos, sejam eles quem forem. Mas, por mais respeito que tenha por eles, que é muito, esta é condição que não assiste nem a Rogério Alves nem, sobretudo, a Sílvio Cervan. Eles não estão na posição de um adepto banal de um clube: são co-responsáveis, os êxitos e inêxitos do clube são também responsabilidade pessoal sua.
Mas, mesmo com essa capitis diminutio, Sílvio Cervan ostenta o título de senador do jornal A BOLA. O tal título que justifica que se espere dele opiniões mais ponderadas, mais isentas e, logo, mais credíveis do que, por exemplo, as minhas. Assim, quando o vi, na sua última coluna, declarar solenemente que «este campeonato está uma fraude» e que «a competitividade é feita com base na batotice», eu tive de partir do princípio de que falava com conhecimento de causa e certamente com motivos gravíssimos para proferir afirmação tão radical e perigosa quanto esta. Radical porque, a partir daqui e nem mesmo que o seu Benfica venha a acabar o campeonato com mais de 20 pontos de atraso do campeão, como sucedeu no ano passado, Sílvio Cervan, para ser coerente, poderá reconhecer qualquer justiça ao campeão ou qualquer seriedade ao campeonato. Perigosa, porque, se o campeão vier a ser o seu Benfica, a sua frase poderá ter um fatal efeito de boomerang: quem quer que ache que o Benfica não mereceu ser campeão, poderá usar as suas palavras para concordar que o campeonato foi uma fraude. Eu, por exemplo, não me esquecerei da frase, se vir motivos para tal. Retroactivamente e aproveitando a boleia do senador, posso até dizer agora que a maior fraude a que assisti nas últimas décadas, e designadamente em matéria de arbitragens, foi o último campeonato ganho pelo Benfica. Mas é só a minha opinião, a de um banal adepto...
O que sucedeu para que Sílvio Cervan tenha decretado desde já que o campeonato é uma fraude, quando apenas decorreram doze jornadas e o Benfica até o lidera? Não seria mais avisado esperar pelas dezoito jornadas que faltam? Pelas deslocações do Benfica a Alvalade e ao Dragão? Pelo cansaço que o tão temido FC Porto não deixará de acusar por ter de combater simultaneamente na Europa e na Taça de Portugal — duas competições onde o plantel de luxo do Benfica já não mora? É que, dito assim, até parece que o raciocínio foi o inverso: que avisado era ir prevenindo desde já uma justificação para um eventual insucesso do Benfica. Uma «fraude»...
A «fraude» foi o golo anulado por Pedro Henriques, aos 94 minutos do jogo da Luz contra o Nacional — já reduzido a dez e depois de todo um jogo em que os madeirenses mostraram não merecer de forma alguma sair derrotados. Concordo que, aparentemente, não houve motivo para a anulação do golo. Mas esse não foi o único erro de Pedro Henriques — outros houve e contra o Nacional, que tiveram importância no jogo, como, legitimamente, recordou Manuel Machado. E, em matéria de erros e, decisivos, de Pedro Henriques, nem calcula o Sílvio Cervan o catálogo deles, em prejuízo do FC Porto, de que eu guardo memoria! Mas, esses, presumo que nunca o tenham incomodado, antes pelo contrário. Não deixa, aliás, de ser curioso que os árbitros que recentemente foram alvo de maiores criticas por parte de benfiquistas e sportinguistas, integrem todos eles a lista dos que mais consistentemente prejudicaram o FC Porto nos últimos anos: Lucílio Baptista, Bruno Paixão, Pedro Henriques. Em comum, o facto de serem ou sportinguistas ou benfiquistas e de esses erros nunca terem merecido nem um átomo da indignação jornalística que agora se levanta em apoio do Benfica e ontem em apoio do Sporting. O Bruno Paixão, por exemplo, que agora suscitou tamanha gritaria dos sportinguistas a propósito do jogo da Taça com o FC Porto (e como se não tivesse prejudicado bem mais os portistas...), é o mesmo árbitro do inesquecível jogo de Campo Maior — essa, sim, a maior fraude que alguma vez vi num campo de futebol — e que iria ter uma importância pontual decisiva na atribuição do título desse ano... justamente ao Sporting e em detrimento do FC Porto. Ironias da História...
Embora, segundo o seu testemunho, Pedro Henriques seja sportinguista, é ao FC Porto que Sílvio Cervan atribui a autoria moral do golo anulado pelo árbitro (porque, que me desculpem os sportinguistas, é do FC Porto que eles têm medo a sério). E daí que, citando-me, embora sem me nomear, ele diga que concorda com a minha frase de que «o FC Porto é o mais sério candidato ao título» — apenas discorda do uso da palavra «sério», neste caso. Ou seja, acha que o FC Porto é o mais sério candidato a um título que não será sério. Palavra de senador.
Ora, eu escrevi tal frase depois de ter assistido ao frustrante empate caseiro do FC Porto contra o Marítimo e antes de saber que o Benfica iria repetir o mesmo resultado contra o Nacional. Mesmo prevendo que a jornada acabaria com o FC Porto a quatro pontos do Benfica, escrevi que pensava ser ele o mais sério candidato. E explicava porquê, dando o exemplo do jogo anterior na Amadora, onde o FC Porto abriu em grande estilo, fez o 1-0, perdeu duas oportunidades incríveis do 2-0, viu o Estrela empatar num golo inconcebível e o árbitro ignorar dois penalties na área do Estrela — e continuou, imperturbável, até voltar a colocar-se em vantagem, sem se incomodar em juntar justificações para um desaire. E dizia, como já o disse muitas vezes, que é esta atitude de conquista, em contraste com a atitude de choradinho eterno dos seus rivais, a atitude de cigarra contra formigas, que torna o FC Porto um candidato e um competidor mais sério. Tivesse o Benfica feito contra o Nacional o jogo que o seu plantel de vedetas justificava e que os seus adeptos têm o direito de exigir, e não precisava de esperar pelas decisões de um árbitro, aos 94 minutos de jogo. Mas é mais fácil vir depois queixar-se do árbitro para os jornais ou sentenciar que isto é uma fraude do que reconhecer as culpas próprias. É uma questão de mentalidade e, desculpem que o diga: há nisto muito do que é a atitude mental dos portugueses em relação a tudo o resto e, por isso mesmo, é que estamos no fim da escala em qualquer índice de competitividade do País.
Miguel Sousa Tavares n' A Bola.
Há uma diferença entre independente e isento — neste caso e, a meu ver, essencial. Eu, por exemplo, desde o primeiro dia que aqui comecei a escrever, que tornei claro o meu estatuto: não sou nem passaria a ser independente, visto que tenho uma filiação clubística e é bem sabido como a paixão clubística tolda a independência de julgamento (a todos, e não apenas aos portistas, como costumam decidir os outros...). Mas, não sendo independente, nunca deixaria de ser isento — não apenas porque não ocupo e nunca ocupei qualquer cargo no meu clube, no seu jornal, televisão ou outros apêndices, e porque, também, e conforme julgo ser público e notório, não presto vassalagem nem silêncio aos seus dirigentes ou técnicos, sejam eles quem forem. Mas, por mais respeito que tenha por eles, que é muito, esta é condição que não assiste nem a Rogério Alves nem, sobretudo, a Sílvio Cervan. Eles não estão na posição de um adepto banal de um clube: são co-responsáveis, os êxitos e inêxitos do clube são também responsabilidade pessoal sua.
Mas, mesmo com essa capitis diminutio, Sílvio Cervan ostenta o título de senador do jornal A BOLA. O tal título que justifica que se espere dele opiniões mais ponderadas, mais isentas e, logo, mais credíveis do que, por exemplo, as minhas. Assim, quando o vi, na sua última coluna, declarar solenemente que «este campeonato está uma fraude» e que «a competitividade é feita com base na batotice», eu tive de partir do princípio de que falava com conhecimento de causa e certamente com motivos gravíssimos para proferir afirmação tão radical e perigosa quanto esta. Radical porque, a partir daqui e nem mesmo que o seu Benfica venha a acabar o campeonato com mais de 20 pontos de atraso do campeão, como sucedeu no ano passado, Sílvio Cervan, para ser coerente, poderá reconhecer qualquer justiça ao campeão ou qualquer seriedade ao campeonato. Perigosa, porque, se o campeão vier a ser o seu Benfica, a sua frase poderá ter um fatal efeito de boomerang: quem quer que ache que o Benfica não mereceu ser campeão, poderá usar as suas palavras para concordar que o campeonato foi uma fraude. Eu, por exemplo, não me esquecerei da frase, se vir motivos para tal. Retroactivamente e aproveitando a boleia do senador, posso até dizer agora que a maior fraude a que assisti nas últimas décadas, e designadamente em matéria de arbitragens, foi o último campeonato ganho pelo Benfica. Mas é só a minha opinião, a de um banal adepto...
O que sucedeu para que Sílvio Cervan tenha decretado desde já que o campeonato é uma fraude, quando apenas decorreram doze jornadas e o Benfica até o lidera? Não seria mais avisado esperar pelas dezoito jornadas que faltam? Pelas deslocações do Benfica a Alvalade e ao Dragão? Pelo cansaço que o tão temido FC Porto não deixará de acusar por ter de combater simultaneamente na Europa e na Taça de Portugal — duas competições onde o plantel de luxo do Benfica já não mora? É que, dito assim, até parece que o raciocínio foi o inverso: que avisado era ir prevenindo desde já uma justificação para um eventual insucesso do Benfica. Uma «fraude»...
A «fraude» foi o golo anulado por Pedro Henriques, aos 94 minutos do jogo da Luz contra o Nacional — já reduzido a dez e depois de todo um jogo em que os madeirenses mostraram não merecer de forma alguma sair derrotados. Concordo que, aparentemente, não houve motivo para a anulação do golo. Mas esse não foi o único erro de Pedro Henriques — outros houve e contra o Nacional, que tiveram importância no jogo, como, legitimamente, recordou Manuel Machado. E, em matéria de erros e, decisivos, de Pedro Henriques, nem calcula o Sílvio Cervan o catálogo deles, em prejuízo do FC Porto, de que eu guardo memoria! Mas, esses, presumo que nunca o tenham incomodado, antes pelo contrário. Não deixa, aliás, de ser curioso que os árbitros que recentemente foram alvo de maiores criticas por parte de benfiquistas e sportinguistas, integrem todos eles a lista dos que mais consistentemente prejudicaram o FC Porto nos últimos anos: Lucílio Baptista, Bruno Paixão, Pedro Henriques. Em comum, o facto de serem ou sportinguistas ou benfiquistas e de esses erros nunca terem merecido nem um átomo da indignação jornalística que agora se levanta em apoio do Benfica e ontem em apoio do Sporting. O Bruno Paixão, por exemplo, que agora suscitou tamanha gritaria dos sportinguistas a propósito do jogo da Taça com o FC Porto (e como se não tivesse prejudicado bem mais os portistas...), é o mesmo árbitro do inesquecível jogo de Campo Maior — essa, sim, a maior fraude que alguma vez vi num campo de futebol — e que iria ter uma importância pontual decisiva na atribuição do título desse ano... justamente ao Sporting e em detrimento do FC Porto. Ironias da História...
Embora, segundo o seu testemunho, Pedro Henriques seja sportinguista, é ao FC Porto que Sílvio Cervan atribui a autoria moral do golo anulado pelo árbitro (porque, que me desculpem os sportinguistas, é do FC Porto que eles têm medo a sério). E daí que, citando-me, embora sem me nomear, ele diga que concorda com a minha frase de que «o FC Porto é o mais sério candidato ao título» — apenas discorda do uso da palavra «sério», neste caso. Ou seja, acha que o FC Porto é o mais sério candidato a um título que não será sério. Palavra de senador.
Ora, eu escrevi tal frase depois de ter assistido ao frustrante empate caseiro do FC Porto contra o Marítimo e antes de saber que o Benfica iria repetir o mesmo resultado contra o Nacional. Mesmo prevendo que a jornada acabaria com o FC Porto a quatro pontos do Benfica, escrevi que pensava ser ele o mais sério candidato. E explicava porquê, dando o exemplo do jogo anterior na Amadora, onde o FC Porto abriu em grande estilo, fez o 1-0, perdeu duas oportunidades incríveis do 2-0, viu o Estrela empatar num golo inconcebível e o árbitro ignorar dois penalties na área do Estrela — e continuou, imperturbável, até voltar a colocar-se em vantagem, sem se incomodar em juntar justificações para um desaire. E dizia, como já o disse muitas vezes, que é esta atitude de conquista, em contraste com a atitude de choradinho eterno dos seus rivais, a atitude de cigarra contra formigas, que torna o FC Porto um candidato e um competidor mais sério. Tivesse o Benfica feito contra o Nacional o jogo que o seu plantel de vedetas justificava e que os seus adeptos têm o direito de exigir, e não precisava de esperar pelas decisões de um árbitro, aos 94 minutos de jogo. Mas é mais fácil vir depois queixar-se do árbitro para os jornais ou sentenciar que isto é uma fraude do que reconhecer as culpas próprias. É uma questão de mentalidade e, desculpem que o diga: há nisto muito do que é a atitude mental dos portugueses em relação a tudo o resto e, por isso mesmo, é que estamos no fim da escala em qualquer índice de competitividade do País.
Miguel Sousa Tavares n' A Bola.
Sem comentários:
Enviar um comentário