1 Nunca tinha visto tal coisa: a semana inteira antes do jogo só deparei com benfiquistas possuídos por uma falta de optimismo total, com nenhuma fé noutra coisa que não fosse uma inevitável derrota às mãos do FC Porto. Poucas horas antes do jogo, um ilustre benfiquista descarregava no treinador e no presidente a responsabilidade pela derrota, que dava como certa. E, quando lhe disse que não compreendia o pessimismo dele, respondeu-me: «Não é pessimismo, é já resignação». Concluí que os benfiquistas estavam borrados de medo do Porto e, recuando aos tempos de infância, senti isso como uma doce desforra: antes de entrar em campo na Luz, o FC Porto já estava a ganhar. E, pelas exuberantes manifestações de alegria de adeptos e jogadores, com tão magra e sofrida vitória, percebi que os benfiquistas têm mais medo do Porto do que de um terramoto de escala 6,1: pareciam sobreviventes de uma catástrofe anunciada, rejubilando por ainda estarem vivos. E confirmei depois, pela euforia sem limites da imprensa desportiva, que o Benfica tinha conseguido uma extraordinária proeza: vencer o FC Porto por 1-0 na Luz. Agradecemos a homenagem.
2 Foi um Benfica-Porto excepcionalmente tranquilo. Não houve declarações incendiárias de parte a parte antes do jogo, não houve incidentes nas bancadas, não houve mau perder nem arrogância na vitória, e, apesar das miseráveis condições do relvado e do mau tempo, não foi um jogo duro nem excessivamente faltoso. Não houve, que me lembre, uma única entrada violenta ou maldosa. Alguns sururus, perdas de tempo e lesões simuladas (dos benfiquistas a defender a magra vantagem) não passaram nunca dos limites normais e aceitáveis. É verdade que antes do jogo, Pinto da Costa foi alvo de uma tentativa de emboscada de uns quantos energúmenos — que a polícia evitou, sem todavia os deter ou identificar. E também, após o jogo, lá houve mais uma confusa história de túnel — desta vez, ao que parece, sem a presença de jogadores do Benfica, mas apenas de stewards ao seu serviço e que conseguiram a proeza de fazer expulsar dois jogadores portistas, já fora do campo e do olhar de testemunhas. Mas, daquilo que se viu, foi só um jogo de futebol e ainda bem.
3 Também não houve «casos de jogo», como quase sempre há. Lucílio Baptista — cuja nomeação considerei uma provocação ao FC Porto — acabou por ver a vida facilitada pelos jogadores e teve uma arbitragem técnica e disciplinarmente razoável, sem influência no desfecho. É verdade que os portistas reclamaram dois penalties na primeira parte, mas sem razão aparente, e é verdade que os benfiquistas reclamaram um na segunda parte e com razão, mas ele resultou directamente da cobrança de um canto que o não era.
4 Enquanto se pôde jogar futebol naquele piso, foi um jogo intenso e bem disputado — a milhas do soporífero Sporting —Benfica de há umas semanas atrás. Claramente, estavam em campo as duas melhores equipes portuguesas do momento, e só não mostraram mais porque o relvado o não deixou.
O Benfica mereceu a vitória, justamente porque jogou melhor enquanto se podia jogar bem. E se o FC Porto jogou mais na segunda parte, foi apenas mais e não melhor. O golo do Benfica, se bem que concluído exemplarmente por Saviola, foi inteiramente fortuito: o David Luiz quis apenas aliviar a bola de qualquer maneira e acabou por isolar com um passe mortal o melhor jogador deste Benfica. Mas, quando o golo apareceu, já se adivinhava e já era merecido. Em toda a primeira parte, jamais o Porto criou um único lance de perigo e passou o tempo todo a transviar passes, a perder bolas no meio-campo e a permitir sistematicamente que o Benfica ganhasse a segunda bola — como sucedeu no golo. Na primeira meia-hora da segunda parte, empurrou, é facto, o Benfica lá para trás e podia também, num golpe de sorte, ter chegado ao golo. Mas apenas dispôs de duas ocasiões para isso e depois, como disse Jesualdo Ferreira, nos últimos vinte minutos já não houve jogo («o Benfica soube gerir o tempo», confessou Jorge Jesus).
Tudo visto e revisto, não tenho dúvida que a grande maioria dos portistas pensa como eu, que a derrota foi justa e não há nada a opor a ela. É isso, aliás, que nos distingue, enquanto adeptos, dos outros: nós sabemos ver futebol, sabemos reconhecer quando a nossa equipa joga mal e não merece ganhar. E onde nós vamos, desde que não nos provoquem, não há incidentes.
5 E porque razão jogámos mal e perdemos? Por duas razões coincidentes e que já aqui anotei antes: porque o Benfica tem muito melhor equipa que no ano passado e nós temos pior equipa. Acima de tudo, e como há muito venho dizendo, porque não temos meio-campo.
Qual era o meio-campo do FC Porto no ano passado? Fernando (que foi uma das revelações do campeonato), Raul Meireles (que fez a sua melhor época de sempre) e Lucho González. Qual é o meio-campo do FC Porto este ano? Fernando (a jogar pior e quase só atrás, a defender), Raul Meireles (a léguas do que fez no ano passado, excepto na Selecção) e um trio, que alterna entre si, formado por Guarín ou Valeri ou Belluschi, e que alguém muito optimista imaginou que poderia, algum deles, substituir Lucho. Para além disso, o FC Porto tem o Cristian Rodriguez transformado, não numa unidade a menos, mas numa nulidade a mais, e perdeu um jogador tão decisivo e vibrante como o Lisandro, substituído por Falcao — que é um bom jogador, mas não tem comparação alguma com o argentino.
Com este panorama, é preocupante ouvir Pinto da Costa (que, como se sabe, é quem faz e desfaz a equipa todos os anos), afirmar que não há necessidade alguma de ir ao mercado, em Janeiro. E não deixa de ser irónico que ele, que todas as épocas vai ao mercado de Verão comprar uma profusão de sul-americanos dos quais nunca se aproveita mais do que um ou dois, servindo os restantes para arruinar a gestão corrente da SAD, agora se arme em poupadinho, enquanto que eu, que sempre o critiquei por isso, agora, sim, ache, que o FC Porto precisa urgentemente de ir ao mercado comprar, não um, mais dois grandes médios criativos de ataque. Se é que queremos evitar outra vez fazer o papel de «sitting duck» contra o Arsenal e se é que queremos evitar o Benfica campeão.
6 Com esta escassez de soluções e face a um meio-campo benfiquista com quatro jogadores, Jesualdo resolveu bater-se com o marcha-atrás Fernando, o intermitente e basicamente apagado Meireles e o inacreditável Guarín — outra teimosia sua, no género do Mariano. Ou seja, entregou o ouro ao bandido, logo de entrada, e depois queixou-se de que a equipa não saía organizadamente para a frente nem ligava o jogo! Pudera, bastava olhar para a cara do Guarín para se perceber o total desnorte técnico e táctico do rapaz, tão perdido num Benfica-Porto como eu estaria a fazer de barítono no S. Carlos! Desta vez, pelo menos, não foi preciso esperar os habituais 60 minutos para que Jesualdo Ferreira realizasse o seu tremendo erro de casting: bastaram 45. Mas fatais.
7 Benfica e FC Porto também se bateram previamente no mercado financeiro, ambos anunciando, com rufar de tambores, duas operações financeiras geniais. O Benfica, realizando uma Assembleia-Geral, onde umas dezenas de sócios aprovaram qualquer coisa que não entenderam bem, passada entre o clube, a SAD e o Benfica Estádio; e o FC Porto anunciando o retumbante «sucesso» de mais um empréstimo obrigacionista colocado na bolsa. É natural que os adeptos não se preocupem muito a tentar entender estas «nuances» das administrações dos seus clubes — o que lhes interessa são as vitórias em campo e pouco mais. Então, expliquemos, sucintamente, o que se passou. No Benfica, o que se passou é que o clube deu o estádio da Luz à SAD, para que esta deixasse de ter capitais próprios negativos — o que, legalmente, provocaria a sua extinção. Quer isto dizer que, se um dia a SAD não tiver como pagar as dívidas, marcham primeiro os jogadores (cujos passes lhe pertencem) e depois o estádio… e o clube fica sem nada. No FC Porto, sucedeu que a SAD contraíu um empréstimo de 18 milhões de euros para pagar outro empréstimo que tinha contraído três anos antes, mais os respectivos juros. E contrair dívidas para pagar dívidas é uma forma clássica de fazer aumentar a dívida. Quanto ao «tremendo sucesso» ficou a dever-se apenas à taxa de juro que a SAD do FC Porto aceitou pagar por esta nova dívida: 6% ao ano — quando as taxas do mercado variam entre 1,25 e 2%. Uma excelente operação!
Miguel Sousa Tavares n' A Bola.
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