Aprecia a diferença e cultiva uma imagem rebelde, apesar da timidez que diz ser-lhe característica. Raul Meireles recebeu O JOGO no Algarve, onde está a passar férias com a família, e não escondeu o desejo de experimentar outros campeonatos. Mas não faz disso obsessão, porque, garantiu, está feliz no clube e até admite estar pronto a assumir maior protagonismo, dado o adeus de Pedro Emanuel. Que lamentou, como lamenta as críticas que fazem ao FC Porto após um mau resultado. Raul explica o que é ser médio de transições, congratula-se com a continuidade de Jesualdo Ferreira e acredita que é possível melhorar o desempenha da época passada.
O Raul vale os 30 milhões da cláusula de rescisão?
Não faço a mínima ideia. Se o Bruno tem cláusula de 30, o Lisandro outros 30, e o Lucho também deve andar por aí, eu não vou ter de dez. É uma questão de equilíbrio. Se o Ronaldo valeu 94 milhões, qualquer jogador do FC Porto pode valer, no mínimo, 20.
É um valor que pode afastar os interessados?
Acho que não. Essa é a cláusula, mas, se houver um clube que dê menos, o FC Porto, conforme as suas necessidades, poderá negociar.
Falou-se no Marselha e no Sevilha como estando interessados em si. Gostava de sair?
Qualquer jogador tem o pensamento de experimentar coisas novas, outros campeonatos, e eu não fujo à regra. Estou muito feliz no FC Porto, na minha cidade e no meu clube, mas, se surgisse uma oportunidade de sair, não a desperdiçava. Jogar no campeonato espanhol, italiano ou no inglês é diferente do que em Portugal. Qualquer jogador tem esse sonho.
Existe essa possibilidade até 31 de Agosto?
Não sei. Estou satisfeito no FC Porto. Se for bom para mim e para o clube, temos de conversar.
Da parte do FC Porto, a ideia é que o Raul continue, por isso foi-lhe renovado o contrato. Pronto para se assumir como uma das figuras do balneário?
Estou pronto para me assumir como um dos mais antigos e experientes. Figura, não. Sou mais um para ajudar.
O Real Madrid pagou 94 milhões de euros pelo Ronaldo. O mercado está doido?
É complicado… Se pagou, é porque achou justo. É o melhor do Mundo e merece ser recompensado financeiramente por isso. Quem sou eu para julgar?
Quanto valeu o golo no Dragão nesse negócio?
Sei que valeu bastante tristeza do nosso lado e alguns milhões de prémio para o Manchester.
Se fosse cidadão espanhol, sentia-se incomodado com esta transferência, sabendo que quase 20 por cento da população está desempregada?
Se calhar. Não tinha pensado bem nisso. Mas é normal que os espanhóis se sintam incomodados, porque estamos a atravessar tempos difíceis. É complicado, até porque ninguém esperava que aparecem este tipo de negócios como o do Kaká e o do Ronaldo.
Se o Raul, Lucho e o Fernando não saírem, será uma vantagem para o FC Porto?
Sem dúvida. Em qualquer equipa, o meio-campo é fundamental, e dou como exemplo o meio-campo do Barcelona. Enchia-me os olhos vê-los jogar. Conseguirmos manter os jogadores será importante, mas é como tudo: se alguém tiver de sair, e este ano o Lucho esteve lesionado, vamos conseguir manter o nível.
O FC Porto já contratou jogadores para todos os sectores, menos para o meio-campo. É uma prova de confiança?
Sim. Além dos que jogaram com mais regularidade, temos o Guarín e o Tomás Costa, jogadores de qualidade que estão prontos a jogar.
Surpreende-o Bolatti ser figura do campeonato argentino?
Não, porque tem muita qualidade, mas não se adaptou à forma como o mister queria que ele jogasse. O Bolatti não é um Fernando.
Ainda se fala português no balneário?
Sim, mas com pronúncia.
Viu chegar argentinos e uruguaios. O que é que eles acrescentam à equipa, além do que se vê em campo?
O Lucho e o Lisandro, jogadores de topo, foram os primeiros e, sendo um povo mais quente, têm outras características. Por exemplo, o beijinho que damos como cumprimento foi trazido por eles. Foram chegando outros sul-americanos e foram acrescentando as músicas dos respectivos países, um pouco da sua cultura, o mate... O balneário ganhou com isso, porque eles fazem um excelente ambiente.
A sua figura extrovertida transforma-se com os microfones à frente. Porquê?
Sou muito tímido e, para ser o que sou, preciso de ganhar confiança. À frente dos microfones, sou mais introvertido. Sou uma pessoa bastante alegre e feliz.
Que se preocupa com o estilo?
Gosto, mas não ao ponto de me preocupar, porque sei que o meu estilo provoca bastantes críticas. Preocupo-me é em olhar para o espelho e estar satisfeito comigo.
Aprecia a diferença?
Bastante. Sou adepto de cada um criar o seu próprio estilo.
Quando fez a primeira tatuagem?
Aos 18 anos, com a minha mulher. Fizemos um desenho tribal igual. A partir daí foi sempre a andar, mas todas têm algum significado. Sempre gostei de coisas diferentes e, quando fiz a primeira, gostei de olhar para o espelho e ver o desenho na minha pele. Fui fazendo mais e conhecendo esse mundo que me fascina. Há quem seja uma verdadeira tela humana. Não fui influenciado por ninguém, este gosto apareceu de forma natural. Quando comecei a fazer tatuagens, era impensável ver alguém com o braço todo tatuado, agora já não.
Para quando a próxima?
Primeiro tenho de acabar uma num dos braços, mas já tenho várias ideias daquilo que quero fazer. Falta saber por onde vou começar. Não quero ficar com o corpo todo tatuado, mas grande parte.
O Real Madrid gosta pouco que os seus jogadores tenham tatuagens. O FC Porto coloca algum problema?
Não. Quando faço uma, mostro ao doutor. Fazer em certas partes do corpo talvez possa limitar movimentos em termos de treinos e por isso procuro fazê-las no início das semanas para estar em condições, quando houver jogos.
A Ivone, a sua mulher, é uma grande influência para si?
Completamente. Aquilo que sou, devo muito a ela. Conhecemo-nos muito cedo, e a minha fase profissional foi toda feita com ela ao meu lado. Está sempre disponível para o que for preciso.
Nas férias há tempo para futebol?
De todo. Já não sou de ver futebol durante o ano. Faço o meu trabalho, mas não chego a casa e ligo a televisão para ver futebol. Tenho a minha família, que precisa de atenção e eu preciso da dela. Tenho sempre uma semana sozinho com a minha mulher, e o resto junto aos meus pais e aos meus sogros.
Nuno disse que Jesualdo é o melhor técnico a formar jogadores. Consegue justificar?
Ele tem razão no que disse. Quando chegou ao FC Porto, após a saída de Adriaanse, a época estava a começar, e a forma como ele abordou a mudança foi fantástica. Vínhamos de uma táctica que era o 3-4-3 ou 3-3-4, e ele disse logo que aquela não era a sua táctica, mas que não a podia mudar de um dia para o outro. Por isso treinávamos a táctica dele à semana e fazíamos os primeiros jogos com a táctica antiga, passando por um processo de adaptação. Depois havia jogadores que já estavam tão habituados a jogar daquela forma, como o Pepe e o Paulo Assunção, que teve de lhes explicar tudo ao pormenor. Esse trabalho é dos mais fortes dele. O exemplo mais visível que tenho é o do Fernando. No início, ele jogava, mas sentia-se preso. O professor insistiu com ele, fez-lhe ver o que queria, e o Fernando teve uma evolução fantástica. O mesmo se aplica ao Mariano, embora a um nível diferente.
A continuidade do treinador foi uma questão de justiça?
Claro. Desde que chegou conquistou muitas coisas e já batemos muitos recordes. A saída dele não podia acontecer, era impossível. Toda a gente o queria, e ele, acima de tudo, merecia continuar.
Uma das metas que o técnico traçou para a próxima época é tentar conquistar o campeonato sem derrotas. Os jogadores estão preparados para esse desafio?
Estão, e é possível isso acontecer. Este ano não andámos longe. Será muito difícil, e seguramente o professor tem noção disso, mas traduz a confiança que tem nos jogadores.
Por outro lado, se acontecer uma derrota, sabem que o mundo vos vai cair em cima?
Isso só aumenta a responsabilidade. Se não conseguirmos, paciência. O importante é sermos campeões no fim.
Vamos ter um campeonato só com treinadores portugueses. Isso aumenta a dificuldade para o FC Porto?
É um facto que os treinadores portugueses têm mais conhecimento da Liga, mas não sei se será uma vantagem para os rivais. Deve ser igual para todos.
Uma das críticas feitas a Quique Flores era a de que não conhecia o futebol português…
Exacto, mas o Co Adriaanse também não conhecia e foi campeão. Não é por aí. Não quero falar muito do Benfica, mas se calhar teve uma equipa que não lhe deu muitas hipóteses de ter sucesso, que foi o FC Porto.
O Milan estava disposto a pagar 15 milhões de euros pelo Cissokho. Foi uma valorização excessiva em apenas meio ano?
O Cissokho é um caso à parte. Esteve muito bem no Setúbal e chegou ao FC Porto porque necessitávamos de um lateral. Foi dos jogadores que tiveram uma adaptação fora do normal, sobretudo a nível do sistema táctico. Completou o lado esquerdo, e os jogos que fez na Champions foram de muito bom nível. Despontou rápido, mas não me surpreende um clube como o Milan dar 15 milhões.
Que lhe pareceu a questão dos dentes. Soou a desculpa de arrependido?
Toda a gente o viu jogar, e a forma física dele era agradável. Pode ter sido uma desculpa, não sei bem porquê. Talvez um problema nas negociações. De certeza que o departamento médico do FC Porto, que é muito rigoroso, não permitiria uma situação dessas. Houve qualquer coisa extradentes, digamos assim.
Férias merecidas depois de tantos festejos?
Foi um ano muito bom. Conseguimos a dobradinha, o tetra, e acho que podíamos ter ido um pouco mais longe na Liga dos Campeões. Estivemos muito bem.
E a nível pessoal, qual é o balanço?
Positivo pelo nível e regularidade que conseguir manter.
O melhor da carreira?
Pode dizer-se que sim. Até pelos títulos que consegui e por ter conseguido o meu espaço na Selecção.
O tetra vai merecer uma tatuagem?
Não. Disseram que tinha feito uma sobre o tri, só porque tenho três estrelas no pescoço, mas não foi por causa disso. Pode vir a acontecer, mas não está nos meus planos. Se calhar, uma do penta ficaria melhor.
Dos quatro títulos, qual deu mais gozo vencer e qual o mais difícil?
Este deu mais gozo, apesar de o primeiro ser sempre mais especial, porque as coisas no início não correram muito bem e toda a gente nos quer deitar abaixo, mas já estamos habituados a isso no FC Porto. Na Champions, também começámos mal e acabámos em primeiro do grupo.
Consegue explicar as razões do "deitar a equipa abaixo"?
Talvez por estarmos a ganhar muitas vezes. Somos os campeões dos últimos anos, e qualquer coisinha serve para criticar. Muitas vezes, a Imprensa não tem motivos para o fazer, porque estamos em primeiro e jogamos bem, mas, se tivermos um deslize, até mesmo um empate serve, criticam. Se virmos, os outros grandes da Europa também não ganham todos os jogos.
A equipa sentiu que podia ter feito história na Champions?
Sem dúvida. Quando saiu o Manchester, praticamente ninguém acreditava no que podíamos fazer, mas chegamos a Old Trafford e fizemos aquele grande jogo. Isso é de uma grande equipa. No segundo jogo, aconteceu-nos o que lhes aconteceu lá, que foi sofrer um golo cedo. Ainda assim, podíamos ter dado a volta. Foi uma desilusão, porque sentíamos que éramos capazes de seguir em frente.
Custa-lhe ver o Boavista na situação em que está?
Custa muito, porque, quando era pequeno, era fanático pelo Boavista e habituei-me a ver aquele clube a jogar para ganhar. Cumpri o meu primeiro sonho, que era chegar aos seniores, e adorei. Quando saí e vi que o clube começou a ir para baixo, percebi que as pessoas que estavam à frente do clube não gostavam dele, caso contrário isso não aconteceria. Não posso dizer aquilo que eram, mas não eram boavisteiros do coração nem gostavam do clube. Não é normal ver isto num clube que foi campeão há pouco tempo.
A solução passaria por imitar o Salgueiros e recomeçar do zero?
Pelo menos, as pessoas que têm dinheiro a haver, que não são poucas, ficavam com a certeza de que não o iriam ver, mas também não eram enganadas. Seria a melhor solução. Ou então que caísse um anjo e conseguisse colocar ordem naquilo.
Jesualdo Ferreira apontou-o como o melhor médio de transição do futebol português. O que é isso?
É tentar receber a bola na direcção da baliza do adversário e, em vez de progredir com ela no pé, jogar o mais simples possível e procurar que a bola chegue rápido aos avançados. É isso que o professor me transmite desde que chegou ao FC Porto. Sinto-me lisonjeado pelas palavras do meu treinador, e ao mesmo tempo aumentam-me a responsabilidade: tenho de conseguir fazer ainda melhor no futuro.
Esta época foi dos jogadores com mais assistências. Tem a ver com a saída de Quaresma ou mudou a forma de jogar?
Com o Quaresma, jogava de forma diferente, porque tínhamos dois extremos e um ponta-de-lança. Esta época jogámos com o Hulk e o Lisandro a maior parte das vezes e com o Rodríguez como o único extremo. Se calhar, participei mais nos processos ofensivos do que no passado.
Chegou ao FC Porto no Verão de 2004. Olhando para o que a equipa ganhou nos anos anteriores, sente que se atrasou um bocado?
Não. Cheguei quando tinha de ser. Fiquei muito orgulhoso, porque estava a ser contratado pelo campeão europeu e é preciso ter qualidade. Se chegasse mais cedo, seria excelente porque teria trabalhado com um grande treinador [Mourinho] e tinha ganho mais uns títulos.
Qual a importância de Co Adriaanse no seu percurso?
Enorme para vários jogadores e para o clube. Vínhamos de um ano mau, e o FC Porto esteve bem ao contratá-lo, porque era muito rigoroso e impunha regras, que era do que precisávamos. Incutiu estilo de jogo e de treino diferentes e muitos jogadores, inclusive eu, evoluíram com ele. Apesar de ter algumas coisas menos correctas.
Foi fácil o entendimento com Fernando, depois de alguns anos com Paulo Assunção?
Foi, porque eu e o Lucho jogamos há muito tempo juntos e já sabemos o que fazer. É verdade que, com o Paulo, jogávamos quase de olhos fechados. O Fernando era o jogador no plantel com características mais parecidas com ele, embora sejam bastante diferentes. Estava habituado a que as minhas costas estivessem protegidas, e o Fernando, mesmo tendo mais qualidade técnica que o Paulo, cumpriu e completámo-nos em campo. Com o tempo, ele foi aprendendo o posicionamento e esteve muito bem, numa posição muito difícil.
Como é que um jogador com o seu físico aguenta os 90 minutos?
Trabalho normalmente e não tenho qualquer cuidado especial. Todos os jogadores têm de aguentar. Apesar de ter este corpinho franzino, tenho de aguentar.
Por si, Pedro Emanuel continuava a jogar?
Continuava até aos 40 anos. Sei que o que vou dizer pode custar um bocadinho aos dirigentes do FC Porto, mas se calhar não foi a decisão mais acertada. O Pedro era como um pai para nós. Mesmo não jogando, tinha um respeito e admiração enorme dos companheiros. Uma coisa é ser capitão a jogar e outra não sendo opção do treinador. O papel do Pedro era bastante importante. Quando era preciso alguma coisa da Direcção, era o Pedro que tratava, e a sua saída vai ser muito sentida. Encontrar um jogador para fazer o que ele fazia é impossível. Claro que vamos continuar para a frente e com vitórias, mas vamos sentir muito a falta dele.
Se o Bruno Alves sair, quem poderá assumir esse papel?
O Lucho e o Nuno, que será o que melhores características tem para se assumir como líder do balneário. O Lucho é um bom líder, mas não tão falador.
O Pedro Emanuel terá sucesso como treinador?
Pela experiência de vida que teve, vai ter muito sucesso. Fez uma boa opção ao escolher começar pela formação, era isso que ele queria. Foi um choque para mim, porque não estava à espera que fosse tão cedo.
Carlos Gouveia n' O Jogo.