quinta-feira, 21 de maio de 2009

Linguagem do futebol

COMO é sabido, a linguagem constitui a forma das ideias. Escrita ou oral, ela representa a clareza, coerência, lógica, fluência e rigor do nosso pensamento e raciocínio. Traduz o modo como entendemos e vemos as coisas, como as conceptualizamos e ordenamos. Por isso mesmo ela não é um dom gratuito ou um mero adorno sem outras implicações; é, sim, expressão viva do estado da formação e traça os limites da nossa visão do mundo. Isto quer dizer que está intimamente ligada ao trabalho de aprimoramento da identidade. Baliza e condiciona a nossa competência para vermos claro dentro de nós e irradiarmos luz e fulgor para fora de nós. É, pois, a principal ferramenta para criar, interpretar e modificar a realidade, para a avaliar e tentar configurar com nível superior. Ou seja, a qualidade de uma actividade é dada pela medida da linguagem e das palavras que a perfazem.
Não se esqueça que no princípio era o Verbo (palavra) e que este se fez carne — assim reza a história da criação do mundo e dos seres que o habitam. Somos cria de nomes, palavras e frases; são as criaturas e também o são as coisas. Tudo emergiu e emerge graças às escolhas e opções feitas através da palavra.

É por tudo isto que encaro com preocupação a linguagem persistente no futebol, tanto em actores como em comentadores. Daria para rir, se não fosse o mal que ela provoca. Recorramos a dois exemplos para ilustrar a situação. Ambos são muito usados nas formas de julgamento, revelando bem a irracionalidade ainda triunfante (não só no futebol, mas também e infelizmente noutros e mais importantes sectores).

O primeiro prende-se à atribuição de mérito à manifesta falta dele. Um clube acumula deméritos e fracassos uns atrás dos outros, mas aparece sempre um inteligente a afirmar que ele «pela sua história» já «merecia» ganhar. Com base em quê? Só se for mudando o desporto: tornando-o um campo de prestação de assistência, caridade e favores aos coitados e anulando o valor e merecimento dos esforçados. (Esse clube é como Portugal: pela sua história merecia ser hoje uma grande potência! Mas não é; vive da saudade e de uma esperança que se inebria de si mesma e dispensa a mudança de rumo e acção).

O segundo exemplo tem a ver com o uso imparável e indispensável da expressão «se calhar». É, porventura, a bengala mais utilizada pelos comentadores que não prescindem de botar faladura e de omitir opinião sobre aquilo que desconhecem ou em que estão inseguros. Para fundamentar o seu palpite e avaliação, o seu entendimento e juízo e a respectiva formulação não encontram coisa melhor a que possam deitar a mão. O maior, o mais elevado, fulgurante e brilhante, o mais sólido, alicerçado e sustentado argumento é o empolgante «se calhar». Nenhum outro o supera, desmente, desmonta ou destrói. Como argumento é arrasador e indestrutível. «Se calhar», foi grande penalidade; «se calhar», tocou a bola com a mão; «se calhar», o treinador ou seleccionador errou; «se calhar», com o jogador x ou y a equipa z ganhava, etc.

O «se calhar» confere a uma boca o expoente máximo da sapiência e o requinte doutoral da proficiência; reveste-a da graça, do encanto e da leveza artísticas da maravilha. Transforma o analista banal e rasteiro num oráculo inspirado e certeiro. Por isso dispensa inteiramente a apresentação de razões e justificações para censurar a solução e a opinião alheias; e alivia do enfado de elaborar e fundamentar a posição pessoal. O «se calhar» mobiliza uma força e um tropel de convicções imbatíveis, apoia-se na espessura e fundura da razão que lhe é imanente; contém em si mesmo um fascínio e incendeia a dúvida com um feixe de luz que sublima o disparate em astro cintilante e torna tudo claríssimo e evidente como o sol do Verão no pino do meio-dia. Com o «se calhar», a ignorância galvaniza-se e passeia intrépida na praça pública, frequenta a corte, deslumbra e seduz, causa baba e ranho nos basbaques da estupidez. «Se calhar», ainda virá o dia em que todos os comentadores e sujeitos afins terão decoro, saberão do que falam e respeitarão a inteligência das pessoas. «Se calhar»!...

Jorge Olímpio Bento n' A Bola.

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